quarta-feira, 29 de junho de 2011

Balbúrdia das letras: Samba, música de negros

Balbúrdia das letras: Samba, música de negros: "Samba, Música de Negros O samba é uma música de crioulos. Quantas vezes não ouvimos, de forma fascista, racista e preconceituo..."

Samba, música de negros


Samba, Música de Negros

O samba é uma música de crioulos. Quantas vezes não ouvimos, de forma fascista, racista e preconceituosa este dito? Porém, este dito, maldito e mal-dito, quando bem-dito da forma correta, vira um lema bendito, um lema de orgulho da negritude que ergueu este país.
Num país doente de um racismo subterrâneo, não assumido, há que se responder com orgulho à afirmação racista de que o samba é uma música de Crioulos. Sim, é uma música de Crioulo! E nós, brasileiros somos todos crioulos. A última pesquisa genética feita no Brasil demonstrou que 80% da população brasileira tem genes negros, ou seja, uma imensa maioria. Os outros 20%, que não o tem, em breve, também serão “contaminados” por esta maravilhosa impureza que é a mistura de todas as etnias, capaz de gerar um povo único. É um país mestiço com vergonha da sua cor, com vergonha dos seus ritos, com vergonha das suas crenças. Um país negro que se olha no espelho e se vê como se fora a Escandinávia. Se a cor branca é minoria no país, todavia é maioria no espelho, nos (DE)formadores de opinião. Desde a tenra infância um processo de esvaziamento de nossa substância nos faz crer, ao olharmos as babás eletrônicas de nossos filhos (apresentadores de “programas infantis” todas, sem exceção, louras) que aqui é a Escandinávia. Olhos azuis ou verdes, pele clara, quase transparente, sobrenomes italianos, espanhóis ou até russos. Numa seleção parecida com o do campo nazista de Auschwitz, a máquina de fazer doidos, Ditadura da Imagem Única, executa sua “eugenia” surda contra os negros, contra os pardos, contra os nordestinos, encucando desde cedo que o belo é ser branco. O negro não se mira no espelho, ele simplesmente não existe, ou existe como exceção, como o “diferente”.
Sim, não é por inocência que a TV faz isto, não é de forma inconsciente que ela trabalha. O racismo sempre foi a ideologia de dominação e manutenção do sistema de castas aqui do Brasil, ele tem de ser perpetuado então. Agora de forma camuflada. Todos apenas devemos fingir que ele não mais existe e ponto final... O Brasil é uma verdadeira democracia racial, o melhor país do mundo para se viver... Para os imbecis e alienados, só se for. O que começa na TV e nas revistas, fica explícito nas passarelas, perpassa toda a sociedade. Os negros são a maioria nas favelas, nos presídios, nos manicômios, na população jovem assassinada. Mas são a minoria nas universidades, na Ditadura da Imagem Única da TV, nos empregos de “boa aparência”: Bancos, Shopping Centers, Administração do Sistema em Geral.
A forma de manter esta sociedade brasileira de castas, assentada de forma inexorável na cor do indivíduo é jamais discuti-la. Ignorar o racismo, como se ele efetivamente fosse apenas um ato de xingamento e não um processo de exclusão social, podar os excessos e manter tudo como está. Que se processem os fascistas exagerados que dão vazão a seus impulsos genocidas contra negros, índios, nordestinos e judeus. Que eles sejam encarcerados e mantidos sobre controle. Nisto todos concordam. Mas que se mantenha ad eterno a diferenciação social precipuamente baseada na cor. Que tudo que lembre a negritude seja visto como exótico e pitoresco e que só sejam admitidos na sociedade branca negros reduzidos e esvaziados de sua substância, de sua negritude militante, de sua contestação a estar na jaula, na nova senzala chamada favela.
Os poucos negros que são admitidos na máquina de fazer loucos da TV cumprem (ainda que inconscientemente) o papel de mostrar que tudo está bem, que não há racismo, que efetivamente o negro foi integrado na sociedade. Integrado como maioria de “avos”. Um vinte avos nesta novela, um quinze avos naquela série, um décimo naquele grupo de sucesso pop. Enfim, cumprindo uma meta de ser minoria complementar à dominação branca, quando teria de ser maioria hegemônica que comanda o processo, não por ser negro, não pela simples cor da pela, mas por, efetivamente, como trabalhadores proletários sustentarem com seus braços a força desta nação.
Candeia, há quase quarenta anos, dizia que quando o negro tomasse consciência de sua cultura, ele seria um rei. Nem precisaria ficar macaqueando os negros estado-unidenses, pois saberia da riqueza de suas raízes, mais criativas e mais combativas que as do próprio negro estado-unidense. Os negros brasileiros conseguiram manter para outras gerações suas crenças, sua ginga, suas músicas, seu batuque, suas danças, foram mais fortes e mais resistentes que os negros da América. Mas hoje olhamos para os nossos irmãos do Norte com inveja, como se tivéssemos mais a aprender com eles do que eles com nossa resistência. Eles tiveram o Black is Beautiful, lutaram na Guerra da Secessão, o belíssimo Jazz e movimentos de consciência que influenciaram irmãos por todo o mundo. E nós?
Nós tivemos os quilombos, as repúblicas negras, as guerras contra a dominação branca. A resistência nos terreiros, a insubmissão. A dança, a manutenção da religião, a música, as crenças, a disseminação da cultura para toda a sociedade branca. Nós temos o samba, tão belo quanto o jazz e muito mais rico e belo que o rap. Podem me chamar de purista, romântico ou parado no tempo, mas não me conformo quando vejo um negro brasileiro tentar protestar cantando rap, imitando o estado-unidense, tentando fazer graças a um amo que não lhe dá a mínima importância. Ao mesmo tempo em que protesta contra sua condição e pobreza, aliena-se de sua aldeia, de sua formação, vira as costas para toda a gestação de senzala, de terreiro de macumba, de batuque, de jongo, de samba, de capoeira, de resistência de séculos que nos alimentou e criou do meio da tristeza da escravidão, da miséria, da indigência, do fundo do Manguezal do Rio e de seus morros de pessoas expulsas da escravidão diretas para a indigência, de toda esta dor, conseguir criar a música e a dança mais sensual do mundo, metamorfoseada neste espetáculo lúbrico e sensual chamado samba. Negar o samba, no fundo é sentir vergonha de toda esta herança. Rap é muito bom, para os nossos camaradas negros estado-unidenses, para nós é no fundo uma mostra de submissão. Ou alguém pode imaginar um negro estado-unidense no Brooklin tentando protestar batucando e gingando como faziam nossos ancestrais ainda na África? Temos muito mais a mostrar para eles de nossa herança do que eles têm para mostrar para nós. Num país doente de um imenso complexo de inferioridade, há que se manter até uma certe empáfia ao reconhecer este imenso legado cultural que mantivemos da mãe África, como semente e fruto, renascidos geração após geração, para ensinar aos nossos irmãos em todo o mundo. E que pode ser traduzido muito bem na palavra samba.
Temos que assumir o samba como bandeira, até porque, até hoje a classe média nunca aceitou o candomblé, nunca aceitou a umbanda, nunca aceitou os ritos e as crenças negras. Um branco enegrecido com Vinícius de Moraes é logo vítima de preconceito, estigmatizado e ridicularizado. Agora, um negro embranquecido, convertido a alguma seita asséptica de influência norte-americana que passa a ver os ritos negros como festim do diabo, são prontamente aceitos na sociedade branca. Negros assimilados, negros esvaziados de sua negritude. Que não mantenham crenças negras, roupas negras, falares negros, costumes negros. Negros que vistam o costureiro da moda e que cantam melodias que rimem nada com coisa nenhuma, que abracem o presidente fascista matador de crianças árabes, estes a sociedade dominante branca aceita, pois são inócuos a seu domínio. Brancos de alma negra como João Nogueira, tão negro quanto Candeia ou Paulo da Portela, que do fundo dos terreiros traz a vetustez de gerações e gerações de senzala, estes são perigosos, porque brandem na mistura do seu sangue o “Canto das Três Raças” na voz de Clara Guerreira.
Para esta classe média asséptica, reconhecer Clara Nunes como a maior cantora do Brasil lhe seria impossível, afinal, o caminho que ela escolheu era o de cantar “folclore” (a cultura “deles” é folclore; no Brasil, o negro é visto como o outro), propagar crendices. Não era o samba esbranquiçado, esvaziado de sentido, que se podia ouvir. Mas o samba que cheirava a povo, que tinha barulho de feira, alarido de favela, gosto de comida de mãe de santo. Para este, resta sempre um lugar apendicular, diminuto, como exótico, como não cultura, como algo a ser festejado em algum dia esquecido da folhinha empoeirada, mas não como parte formadora da nossa alma brasileira.
Talvez nossa elite branca pense que com o tempo, com o esquecimento coletivo forçado através deste programa de esvaziamento da alma posto em andamento pela Ditadura da Imagem Única, possa se fazer a lobotomia em todo nosso povo e arrancar a parte negra de nosso ser. Arrancar a nossa parte mais criativa e mais sã para restar em nós uma estéril nação de bobos imitadores, que além de macaquear os estado-unidenses, pouco ou nada sabe além de contar dinheiro que teima em cada dia nos fugir.
Contra esta lobotomia fascista, há que se erguer bem alto a bandeira de nosso samba negro, samba de crioulo, samba de terreiro, samba de umbanda e candomblé, samba de raiz. Sim, o samba é coisa de Crioulo, só que nós, queiramos ou não, de pele negra ou não, somos todos no fundo bem crioulos – neste país erguido sobre o sangue e o suor do trabalho do negro. Contra o esquecimento coletivo e a imbecilização geral e coletiva, recomenda, doses cavalares do autêntico samba negro. Como fala Paulinho, Bebadachama... Chama Candeia, chama Cartola, chama Nélson Cavaquinho, chama Mestre Marçal, chama Argemiro, chama Nélson Sargento, chama Noel, chama Herivélton...
Chama de nossa alma! Todos negros sem exceção em seu espírito.

Balbúrdia das letras: Menino de Rua eu fui

Balbúrdia das letras: Menino de Rua eu fui: "Menino de Rua Era uma vez um tempo de pardais, de lampiões de gás Onde ainda havia fadas No Bonde havia um anjo para guiar, out..."

Menino de Rua eu fui


Menino de Rua

Era uma vez um tempo de pardais, de lampiões de gás
Onde ainda havia fadas
No Bonde havia um anjo para guiar, outro pra dar lugar (...)
Veio o Marquês de uma terra então perdida
E mais uma vez se fez dono da vida
Mandou plantar cem dúzias de avenidas para sepultar de vez as margaridas – Paulinho Tapajós

Fui um menino de rua, não nesta acepção feia que a palavra tomou hoje, de crianças que não têm lar para onde voltar, ou quando têm, não podem chamar aquilo de lar e optam por ficar na rua, ao relento, a sofrerem toda sorte de violência doméstica. Quando eu era criança, a crise que se abate sobre nós ainda não tinha condenado milhões de crianças a este epíteto de “criança de rua”, havia pobreza, mas não esta quantidade de meninos vagando pelas cidades. Criança de rua é uma expressão absurda, nenhuma criança é da rua, estas crianças estão na rua, a nossa indiferença e nosso descaso as jogaram lá. Não é a pobreza que as condena à rua; Cuba, um país pobre tem uma frase, escrita no aeroporto de Havana, que sempre me arrepia, HOJE MILHÕES DE CRIANÇAS DORMIRÃO NAS RUAS DO MUNDO, NENHUMA DELAS É CUBANA.
Isto explicado, insisto que criança de rua fui, numa outra acepção, de criança brincando ao vento despreocupada, com outras dezenas de crianças da vizinhança, cujos pais não sofriam os terrores e as neuroses dos dias de hoje. Não havia esta “guerra do tráfico”, esta preocupação neurótica com violência, notícias de pedofilia, de rapto de crianças. Nossos pais nos deixavam a brincar na rua, as crianças tomando contas umas das outras, com quase nenhum medo. Afinal, à época, morava na Baixada Fluminense, num bairro em que os carros contavam-se nos dedos, os perigos para uma criança eram: rasgar o pé em um caco de vidro por correr descalço, cair da laje soltando pipa (este um perigo um pouco maior), tomar uma picada de marimbondo, brigar na rua e voltar com um olho roxo (correndo o risco de apanhar de novo em casa)... Nada das desgraças do mundo moderno, nada dos pesadelos que assolam os pais hoje em dia. A vida das crianças pobres (e não miseráveis) era uma vida boa, umas acompanhando as outras nas brincadeiras de rua.
E agora me dá uma grande angústia ao perceber que, talvez, minha geração tenha sido a última geração de crianças de rua, de crianças criadas na rua, correndo ao vento, colhendo fruta, jogando bola com o pé descalço, brincando de pique, jogando pelada e chutando o chão, chutando lata, chutando tudo que fosse compatível com uma bola. Comendo goiaba, comendo amêndoas, comendo cajá, comendo jambo, comendo carambola, chupando cana, na maioria das vezes, roubado da casa do vizinho, o que dava um tempero bem mais saboroso... Uma geração que aprendeu na rua muito mais coisa que imaginassem podíamos aprender. Aprender a ser gente, a compartilhar, a repartir, a ser solidário, a vida em comunidade, a ser humano sendo outros, a chorar, a consolar e ser consolado, a brigar junto, a fugir junto, a criar laços e comunidades, a se preocupar com o outro. Aprendizado não teórico, que levo no fundo da minha alma até hoje. Por mais que os anos passem, por mais que estude, que aprenda, que me aperfeiçoe, que ganhe diplomas, nada mais sou que uma criança da Baixada Fluminense, eu saí da rua da minha infância, mas as ruas da minha infância, tudo que aprendi nelas, não saíram e não vão sair de dentro de mim até a morte. Serei sempre, graças a Deus, até o suspiro final, o menino de uma rua da Baixada Fluminense.
As crianças de rua, nos dias de hoje, foram substituídas por crianças de apartamento, videogame, jogo em rede, internet. Uma geração robotizada e individualista, presa no medo (justificável ou não) dos pais, que temem a violência, que trabalham demais porque temem perder o emprego, que temem que os filhos sejam raptados, sejam seviciados, que hiperprotegem uma geração que vai mais e mais e mais e mais e mais se individualizando, se educando pela TV, pelos chats, pelos jogos em rede, pelas lan house e cada vez menos pelo cheiro da fruta, pela carícia do vento, pelo nascer do sol, pelo nascer da lua, pela chuva no rosto, pelo futebol na chuva, pelo pique-esconde.
Medo da violência, medo do contato humano, casas cada vez mais prisões, condomínios cada vez mais fechados, próximos cada vez mais distantes, gente cada vez mais desumanizada ao nosso olhar. A geração Xuxa realmente teve infância? Quando eu era menor eu não tinha tempo para assistir TV, a rua me fascinava e prendia. Hoje, o espetáculo ao vivo das ruas, cada vez se afasta mais e mais para as pequenas cidades sem violência, que agora estão cada vez mais distantes de qualquer centro urbanizado, pois as cidades medianas copiam das cidades grandes o medo, o trânsito, a organização de classes das ruas, condomínios fechados onde bens e pessoas ficam trancados em gaiolas de luxo.
Pobre geração criada sem ruas, que sonhos sonharão? A lua em seus sonhos será virtual? Os seus desejos serão expressos no orkut? Suas fantasias expressas no youtube? Estamos criando prisões em nossas ruas e casas, vivendo vidas de condenados perpétuos e condenando nossos filhos às mesmas penas. Precisamos reconquistar a rua e a praça como lugares comuns, arrancar as grades, conversar com o pipoqueiro, retomar aquele sentido comunal, quase tribal que tínhamos em nossas vidas, e olha que esta outra vida, mais humana e fraterna, ocorria não faz muito tempo...

Balbúrdia das letras: Os que fazem a greve

Balbúrdia das letras: Os que fazem a greve: "Os Que Fazem a Greve Nestes dias de apostasia total, de descrença e indiferença, os que fazem a greve incendeiam os outros com..."

Os que fazem a greve


Os Que Fazem a Greve

Nestes dias de apostasia total, de descrença e indiferença, os que fazem a greve incendeiam os outros com a chama da esperança; os que furam a greve propagam a covardia e o conformismo.
Os que fazem a greve mostram que é necessário se indignar e que o sagrado direito de discordar e lutar por seus direitos é tão fundamental como o pão nosso de cada dia; os fura-greves se alinham com aqueles que querem transformam o ser humano numa máquina capaz apenas de trabalhar e se reproduzir.
Os que fazem a greve lutam por um futuro melhor, mais digno, onde todos possam viver e não apenas sobreviver; os fura-greves constroem um futuro de violência e caos, onde haja menos direitos e mais violência, onde o silêncio seja imperativo e obedecer, uma missão para sobreviver.
Os que fazem a greve não lutam só por aumento de salário. Os grevistas lutam por um país mais justo, mais humano, por uma humanidade mais solidária, onde o pão, a educação e a diversão sejam para todos; os que furam a greve não ligam se o pão for para poucos, e se contentam com migalhas. Justiça é uma palavra para qual não ligam e o próximo é um competidor, jamais um irmão.
Os que fazem a greve querem que o futuro de seus filhos seja límpido, com um povo bem nutrido, um país desenvolvido, com paz e moradia. Ensinam a seus filhos dignidade e honestidade, levantam alta a bandeira do amor à sua terra e ao futuro melhor; os que furam a greve não veem que legam para os seus descendentes um país dividido e violento, sem paz e igualdade. Um lugar onde só há grades, nas prisões e nas casas, e que nem o ventre das mães é seguro. Um país de poucos para o choro de muitos.
Os que fazem a greve edificam relações mais límpidas dentro do seu local de trabalho, mais transparentes, fraternas e baseadas na competência e no esforço; os que furam a greve apostam no puxa-saquismo, no cumpadrismo e na submissão. Têm mais apego a seus cargos que às suas convicções e preferem se submeter a ordem injustas que se unir e lutar por relações de trabalho claras e justas.
Os que fazem a greve estão em paz com a própria consciência e fazem a sua parte para que este país saia deste imenso atoleiro em que se encontra; os fura-greves preferem atolar no charco de indiferença a esta injustiça social, são indiferentes a toda esta imensa crise moral e espiritual que assola a nação e apenas reclamam da falência moral, como se não fossem cúmplices de tudo ao aguentar calados o desmonte do país.
Os que fazem a greve são o sal da terra!

domingo, 19 de junho de 2011

Balbúrdia das letras: Feiticeira

Balbúrdia das letras: Feiticeira: "A Feiticeira Ela chegou num dia de tempestade. Enquanto as pessoas se trancavam em casa, encanadas num medo secular, trovões sacudiam as ca..."

Feiticeira

A Feiticeira


Ela chegou num dia de tempestade. Enquanto as pessoas se trancavam em casa, encanadas num medo secular, trovões sacudiam as casas, de maneira que o rio passeava por entre as ruas e todos eram só pavor. Quando ela entrou na cidade, com seu vestido curto colado no corpo, deixava ver, na transparência encharcada o negror do bico dos seios e até o triângulo fogoso. Vinha calmamente caminhando pelo meio da rua, como se saísse da borrasca.
Como uma Iemanjá de ventos ela tocou a procela e o estio se fez, o sol apareceu, radiante, sacudindo um arco-íris no meio dos cabelos negros dela.
Nunca mais a cidade teve paz, dividida ao meio: os homens a amavam, a desejavam, queriam a carne dela; as mulheres a odiavam, se rasgavam com despeito.
Ela foi morar numa pequena casa alugada no centro do vilarejo. Vivia de vender divindades, colares e miçangas que fazia, ora de cristais que lhe acorriam quando caminhava nas matas em derredor, ora de conchas de não se sabe que mar, se em profundezas do interior ela tinha se afundado.
O padre a condenara. Jamais se confessara. O feitor dos pecados estava com o ouvido cheio de tantas mentiras. Nas confissões, homens que nunca a tocaram (e até algumas mulheres) mentiam, ou enlouqueciam, confundiam a realidade com o desejo atormentado e forte que sentiam, e teciam para o padre urdiduras de volúpias loucas, de três mil penetrações em mil buracos diferentes e línguas e braços.
Nunca ninguém, em verdade, na cidade a possuíra, embora quase todos a quisessem.
O coronel Torquemada tentou. Primeiro se fez de capitalista, propôs casamento, estava disposto a separar-se da esposa, ofereceu jóias (sempre recusadas). Suando por todas as suas banhas, mil vezes entrara, duas mil vezes saíra da casa da feiticeira, sempre enjeitado ao tentar seduzi-la. Ele não podia admitir, afinal, quando queria uma mulher era só apontar um dedo, e se fosse uma camponesa então, só derrubá-la e montá-la como um burro, ou outro animal. Este animal jurássico, por fim, se cansou de pedir o que, por direito seria dele. Iria numa noite à casa de Bela (este era o nome dela, sempre que lhe perguntavam, ela apenas dizia Bela, Bela de nada...) e tomaria à força, com ajuda dos seus capangas, do corpo dela, como melhor lhe aprouvesse. Propósitos adivinhados por ela em seus tarôs. No dia que ele marcara para a desforra, adormeceu durante o dia com uma preguiça incomum e foi morto, com água quente no ouvido, pela beata mulher, que enlouqueceu e até hoje corre pelos caminhos deste mundo, como se perseguida pelo demo em pessoa.
Depois tentou um playboy, comedor de meninas incautas, o gostosão da cidade. Todas as mulheres suspiravam por ele, por que ela não suspiraria? Perfumou-se, engravatou-se, poliu o carro, não se fez de rogado. Tentou de tudo e se apaixonou. E ficou bobo de amor, imprestável para as outras, sem nunca ter tocado em bela. De tanta tristeza morreu tuberculoso e todos na cidade vêem sua alma entristecida, vagueando pelas noites com um único nome na boca: Bela.
Um seminarista largou a batina, que já estava se incendiando em contato com o pênis, que ficou empedrecido de tanto desejo ao sentir o cheiro dela. Para não enlouquecer foi embora da cidade. Parou no primeiro bordel, comeu a cafetina, que se apaixonou, mas ficou ele tomado de um tesão tão grande que, quando não está dormindo, está fodendo, e, para isto ela teve que permitir que ele trepasse com todas as putas do bordel. Virou uma sensação na cidade e tem mulher que vem de longe para ver e experimentar, pois não há no mundo tesão igual. Entretanto, ele está sempre com um olhar tristonho e enjeitado, pois o cheiro de mar de Bela nunca lhe saiu das narinas.
Outros enlouqueceram na cidade, casais se separaram, velhos se suicidaram, planos mil para conquistá-la. Estuprá-la, também pensaram, mas era impossível, pois seus santos sempre lhe iluminavam o caminho e ela, com um feitiço, matava ou enlouquecia o infeliz.
Temida e poderosa, solitária, de peito fechado para o amor, encantada no seu espelho, fazia sexo consigo mesmo, rolando pela cama durante as noites, um espelho frente a outro, como se amasse infinitas Belas...
Um dia, depois de cinco anos, volta à cidade um simples rapaz que fora, a muito custo, estudar na capital. Voltou doutor, graças às economias da mãe e de seu próprio esforço sobre-humano em trabalhar em tudo que pudesse.
Logo que chegou foi avisado que jamais olhasse nos olhos de Bela, pois estaria enfeitiçado para sempre. Mas a desobediência era seu destino e este lhe sorriu quando um dia, ao ir pescar, encontrou com ela encantando peixes e colhendo-os no rio.
Ela o olhou, mas ele não se alterou. Continuou com seu olhar sombrio e tristonho, de quem não tem nada mais na vida que sua própria consciência e esta bem mais vale que ouro. E pensou consigo mesmo: Esta é a bruxa? Que mulher comum! E este pensamento surdo atordoou Bela que o adivinhara pela indiferença. Ele passou por ela, como se ela fosse mais uma das pedras do caminho, e, pela primeira vez, depois dos séculos que ela vivera, ela se perturbou com um homem.
Naquela noite não conseguiu fazer amor com os espelhos. Seus dedos não lhe davam prazer, senão dor. Seu sexo estava teso e ela se sentia rígida e irritada. Fez então um feitiço e atirou contra ele. Inútil, era um menino tão distraído, que o feitiço não deu conta dele, e foi acertar o vigário, que louco de amor, largou batina e ficou uma semana cantando serenatas, dia e noite à porta de Bela, escandalizando a cidade, até que ela entendesse o mal-feito e desfizesse o bruxedo.
Então ela se perfumou de mar e jasmim, colocou seu vestido mais simples e belo, alinhou os cabelos e foi à praça, onde sabia, o encontraria. Lá chegou, e ele distraído, como sempre. Tão ausente ele estava que ela teve que se sentar ao lado dele no banco para que ele a notasse. O cheiro dela entrava por seu nariz e ele não se perturbava. Não sabia como aquele homem podia não querer tocá-la. Pensou, talvez ele fosse gay e ia quase se levantando, quando ele falou um oi.
Ela se zangou. Como? Só oi! Pensava ela. Era impossível alguém imune a feitiços. Então ela fez uma coisa que seus quatro séculos de vida jamais pensaram em fazer, suas muitas cidades e andanças, tomou da boca deste doce menino e beijou, para que o encantasse. A cabeça de Bela viu espelhos se quebrarem no mesmo instante e os dois foram arrebatados por um tufão junto com a praça inteira. Ninguém mais na cidade teve notícias dos dois desaparecidos.
Na verdade ele era o prometido dela, coisa que o tarô, que tudo a ela avisara, disto jamais dissera, pois o amor é sempre um ladrão sem vergonha e imprevisível. Ao se tocarem, todos os segredos foram contados, seus corpos se consumiram em fogo e seus espíritos transformaram-se me estrelas loucas insones, posto que orbitam fazendo amor, em milhões de gozos escarlate por toda eternidade.

Balbúrdia das letras: Caminho

Balbúrdia das letras: Caminho: "Caminho Sigo meu carinho impuro, De poeira, estrada, terra, muita terra Música, vozes, cerveja, mulheres, burburinho. Nada me transcende, ..."

Caminho

Caminho


Sigo meu carinho impuro,
De poeira, estrada, terra, muita terra
Música, vozes, cerveja, mulheres, burburinho.
Nada me transcende,
Nada me pára.
Busco a profundidade das coisas imperfeitas
E a vivência rica de não me isolar.

Vejo rostos tragados pelo sol
E pela fadiga do trabalho.
Neles me miro,
Vejo a beleza das rugas
Dos sulcos provocados por lágrimas e esperanças,
Por vida em teimosia de permanecer
De não se entregar.

Durmo em leitos diferentes
Encontro novos amigos,
Levo-os no meu coração
Como num ônibus estradeiro
Para cada parte
Aprendendo sempre,
Em cada aperto de mão,
Em cada gole de vinho,
Em cada festa,
Em cada novo corpo de mulher amada.

Não busco sentidos ocultos longe do homem
Não vejo mística em deuses fora do coração.
Não encontro países mirando meu umbigo.
Vejo cada pedaço de gente espalhada canto a canto
Desta minha terra como se fora
Uma plantação de vontades
A crescer e germinar
Em dias e dias que vivo
Como a agradecer a vida que me foi dada
E em troca reparto cada hora que recebi
Com todo irmão em que me miro no espelho dos olhos
E vejo que uma página do meu destino que se desprende
E se joga na fogueira destes corações
Para que não tenha sido vivida à toa.

sábado, 18 de junho de 2011

Balbúrdia das letras: A morte

Balbúrdia das letras: A morte: "A Morte A morte. Anunciada, Premeditada, Cantada, Festejada, Mais que a vida. A morte. Um espetáculo circense! A facão, Sangue, A tiro,..."

A morte


A Morte

A morte.
Anunciada,
Premeditada,
Cantada,
Festejada,
Mais que a vida.
A morte.
Um espetáculo circense!

A facão,
Sangue,
A tiro,
Sangue,
Na boca escorre
O gosto de sangue
Da morte.
A morte Irrompe,
Na noite,
De dia,
No asfalto,
No morro,
No sertão.

A morte,
Matada.
Arretada.
Anunciada.
Medrada.

Apertada na garganta

Como tenazes obscuras

Que teimam em nos sufocar.


Nem um pio,
Nem um grito,
Nem choro.

A morte é a padroeira,
Dos meninos
Na rua,
Das putas,
Na rua,
Dos travestis,
Na rua
Da juventude,
Lutando na rua,
E dos sem-terra
Em sua busca por uma pátria.
É a morte
Padroeira dos nossos sonhos?

A morte,
Sufocada no peito.
Evangélicos vivendo à espera da morte.
Esperança que dança a marcha fúnebre.
A angústia de não viver.

Será
A morte o fim da nossa semente.
Depois de plantados
Prosseguirão:
Esta dor?
O amor?
O ideal?

A morte não sonha e espera triunfar
Nessas horas insones
Ideais adormecidos
Que espera esperar?

A morte


A Morte

A morte.
Anunciada,
Premeditada,
Cantada,
Festejada,
Mais que a vida.
A morte.
Um espetáculo circense!

A facão,
Sangue,
A tiro,
Sangue,
Na boca escorre
O gosto de sangue
Da morte.
A morte Irrompe,
Na noite,
De dia,
No asfalto,
No morro,
No sertão.

A morte,
Matada.
Arretada.
Anunciada.
Medrada.

Apertada na garganta

Como tenazes obscuras

Que teimam em nos sufocar.


Nem um pio,
Nem um grito,
Nem choro.

A morte é a padroeira,
Dos meninos
Na rua,
Das putas,
Na rua,
Dos travestis,
Na rua
Da juventude,
Lutando na rua,
E dos sem-terra
Em sua busca por uma pátria.
É a morte
Padroeira dos nossos sonhos?

A morte,
Sufocada no peito.
Evangélicos vivendo à espera da morte.
Esperança que dança a marcha fúnebre.
A angústia de não viver.

Será
A morte o fim da nossa semente.
Depois de plantados
Prosseguirão:
Esta dor?
O amor?
O ideal?

A morte não sonha e espera triunfar
Nessas horas insones
Ideais adormecidos
Que espera esperar?

Balbúrdia das letras: A face oculta do capital

Balbúrdia das letras: A face oculta do capital: "A Face Oculta do Capital Aqui estão as vontades ocultas de tua ideologia, burguês E o ódio surdo de tua consciência fascista, que assim t..."

A face oculta do capital

A Face Oculta do Capital

Aqui estão as vontades ocultas de tua ideologia, burguês
E o ódio surdo de tua consciência fascista, que assim te fala:

Ateie fogo no barraco que construíram ao lado de tua mansão.
Acenda um charuto com as chamas da miséria.
Sinta no fundo da tua fossa nasal o chamuscar da sobrevivência.
Penicos de plástico derretendo, televisores em techinocolor
Que já não doparão mais qualquer dor.
Roupas trapos queimando colorindo o céu.
Quem sabe até uma pequena criança faminta
Vire churrasco chorando baixinho, sem forças,
Dando adeus a um futuro que não viria.

Sinta o prazer de ver morrer em tua frente
O mendigo claudicante que te implora pão.
Use o corpo dele como calçada em tua caminhada matinal.
Quem sabe esta imagem possa te ajudar no regime.

Dê comida aos gatos da Praia do Arpoador.
Depois corra irado atrás dos moleques vagabundos
Que ousam disputar a comida de tão nobres animais.
Bata com força na face de um menino desses.
Ajude a marcar o corpo de mais um menor de rua.
Ponha mais ódio insano no nosso caldeirão social.

Compre, Acima de tudo compre.
Curta sua liberdade comprando
Benneton, I-podi, Mitsubshi,
PC-IBM, Sony, Mercedes, Audi.
Faça um poema à liberdade de comprar.
Compre uma identidade nova,
Dando a você o sobrenome de uma famosa multinacional.

Compre também um revólver.
Perca esse medo de nas ruas caminhar.
Assassine o primeiro miserável que lhe estender a mão,
Rompendo a paz de suas visitas ao shopping center.
Não deixe que os desqualificados roubem-lhe o frescor
Que emana do seu corpo bem vestido e alimentado.
Despreze a barriga daquela que,
Sentada na calçada, segura no colo uma menina
Enquanto forma outra no ventre.
Culpe-a pela própria miséria.
Deixe que o pobre amargue o sentido da indigência.

E, se alguma beleza sobrar nas ancas,
Na bunda, nos seios, nos lábios, no rosto de uma pobre trabalhadora,
Não tenha nenhum pudor em usá-la.
Coma toda essa beleza.
Use do corpo dela como quem chafurda num chiqueiro.
Faça com que ela se apaixone, Engravide-a.
Depois a faça abortar ou sustentar sozinha o filho
Que ela deixou vir por “burrice”.
Humilhe-a em sua condição social.
Deixe-a persegui-lo no cego amor dela.
Isto far-te-á bem ao ego.

Cultive os nobres sentimentos,
Os va1ores que mantém vivo e feliz o Estado.
A indiferença a tudo que não te dê lucro.
Aprenda a frase: "Que isto tem a ver comigo?"
O ódio à pobreza e aos pobres que a geraram.
Que te atrapalham o sossego de passear na Zona Sul e na Barra.
Que entulham as esquinas vendendo bugigangas.
Que são tão mal agradecidos quando lhe são serviçais.
Além de fazerem um serviço "porco", vivem reclamando de salário.
Cultive a vaidade: a corporal, a intelectual.
Transforme-se no intelectual da moda
Falando em metáforas esotéricas porra nenhuma.
Apareça em todos os canais de televisão
E em todos os jornais,
Fabricando as fúteis novidades das colunas sociais.
Pinte o cabelo na cor da moda
E fale de todos os seus novos escândalos sexuais,
Alimente a verborragia gramaticalmente impecável,
Construa seu caminho até a academia.
Viva, cada frescor do seu ar-condicionado.
Viva, cada metro de seu apartamento de luxo.
Cada mal trato a seus empregados,
Cada grama de sua cocaína e de seu êcstasy,
Viva, cada glamour de suas festas.
Viva esta vida rica e individual.
Viva para si e para os seus somente.

Proteja os seus filhos da contaminação
Que a convivência com próximo traz,
Poderá nascer nele o sentimento de solidariedade.
Crie seu filho como a um porco:
Vaidoso e burro,
Preso e gordo,
Vazio e egoísta.
Dê-lhe tudo que seu dinheiro puder comprar.
Dê-lhe a sensação de onipotência e o gosto pelo poder.
Ensine-o a mandar.
Pratique a tirania familiar.
Inculque nele a importância de todos esses seus anos de sadismo,
Refinado como o mais caro dos scotchs,
Com a aparência mansa dos senhores circunspectos
E ódio surdo dos grupos de extermínio.
É toda sua essa herança.
Guarda-a com teus guardas mais que armados
E maravilhosamente mal remunerados.
Fique toda sua vida sem dormir
Preocupado com a vingança dos que não comem,
Esquecida momentaneamente no aprazível de sua casa de campo,
E nos passeios ostentosos de iate.

Goza essa herança.
Esta tranqüilidade sustentada a bala.
Ela é tudo que lhe enriquece.
Ela é sua gloria,
Ela é a sua prisão dourada.

Balbúrdia das letras: A cidade vista do Alto

Balbúrdia das letras: A cidade vista do Alto: "A Cidade Vista do Alto Do alto do Morro do Alemão veem-se as luzes Do aeroporto Internacional do Galeão. O sonho do pobre parte com os a..."

A cidade vista do Alto

A Cidade Vista do Alto

Do alto do Morro do Alemão veem-se as luzes
Do aeroporto Internacional do Galeão.
O sonho do pobre parte com os aviões,
Por terras diferentes,
Onde a alegria não seja efêmera
E o sacrifício a regra.

A pedra nua, escavada, desmatada.
Pedra perfurada, sangrada.
A casa que se erige altiva,
Por cima do mundo.
Pedra conspurcada.
Fezes que escorrem
Pela cara da pedra,
Morro abaixo.
O cheiro que sobe,
Inunda a narina,
Fere a dignidade.

O trabalho,
Na segunda,
No asfalto,
Na mansão,
No restaurante,
Desinfetante,
Banheiro limpo,
Esforço do pobre.
Ar condicionado,
Relógio de ponto,
Seis horas,
Pernas cansadas,
Com varizes,
Voltam a realidade de cubículos
Sem espaço para o sol ou para a lua.

A violenta insatisfação
De ser sempre o Lázaro
Da parábola de Cristo.
Comendo as sobras à beira da mesa
De plantar o pão
E nunca ser recompensado.

Quando o morro desce para o asfalto
É vigiado na porta das lojas,
É barrado nas portas de luxo,
É esquecido nas filas dos hospitais,
Só encontra abertas as portas da igreja e da Delegacia.

A miséria precipita-se sobre a cidade
Como uma obra de arte apocalíptica.
Rocinha servindo São Conrado,
Tabajaras vigiando Copacabana.

Exército de flanelinhas,
Matilhas de menores,
Sorriso entre debochado e cínico,
Transfigurado pela cola de sapateiro e pelo crack
Pequenos Cristos em eterna comiseração

O olhar infantil, em ânsia infinda,
Se pergunta:
Por que deve um menino
Viver pior que um cão,
De esmolas, no roubo, na prostituição?

Nas lojas de artigos importados
Deseja o menino -
Ver um aquecedor elétrico de corações,
Um abridor de olhos para o mundo.
E possamos então ver que não é poética
É desumana a pobreza!
Um homem com fome,
Trôpego de cachaça no caminho,
Ou uma criança disputar com os ratos
Os restos do restaurante de luxo.
Retratos da miséria material do povo
E da miséria espiritual dos garantidos do sistema.

Quem consegue ver,
Indiferente,
A fome na face do semelhante,
Não merece ser chamado de homem.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Balbúrdia das letras: A caverna

Balbúrdia das letras: A caverna: "A Caverna Desde que foi decretado pelo Estado oficial que a natureza era uma inimiga a ser desbravada, conquistada e ferida, os..."

A caverna

A Caverna

Desde que foi decretado pelo Estado oficial que a natureza era uma inimiga a ser desbravada, conquistada e ferida, os homens se recolheram a uma imensa caverna. Todos tinham, em seus lares, uma grande tela chamada de tele-inversão, onde podiam ver o mundo. Tudo era fabricado, os cheiros, os sons, os gostos, os ídolos, as práticas, os carros, muito carros, barulhentos, fumegantes, algumas pessoas tinham vários, era o símbolo do sexo e do poder. E celulares, gritantes, estridentes, desnecessários, as pessoas andavam com os celulares todo o dia, e falavam neles, falavam muito, mas muito mais do que falavam ao vivo, olhando nos olhos, que agora eram todos azuis, graças as diversas lentes que escondiam as descendências sempre mestiças renegadas, desapareciam nos olhos.
Era um mundo novo, da imensa democracia “universal”. Uma democracia onde o grande poder era o de consumir, havia eleições periódicas, onde, com muito dinheiro o povo miúdo e pobre escolhia o ricaço que lhe daria a corda com que se enforcar.
Nesta sociedade nascera um menino, de nome Demócrito. Ele recebera seu nome do filósofo grego. Seu pai fora expulso da caverna há dezenas de anos atrás e acabou por morrer, feliz, apesar de estar longe da família, no exílio, pois fora da caverna era a liberdade. Isto ele escrevera sempre ao filho, embora pouquíssimas cartas houvessem podido chegar.
Os amigos de Demócrito ridicularizavam-no. Não havia realidade fora da caverna, o mundo era plano e fora dele era só abismo, tristeza, pobreza. Não havia supermercados, nem shopping centers, nem celulares, nem computadores, era o abismo o infindável vazio. Demócrito não acreditava. Ele cria que fora daquela caverna insuportável, onde os homens eram classificados de acordo com o valor depositado na conta corrente, havia um mundo. Redondo, com cheiro de plantas e frutas. Com selvas e rios, com outras cores, que não fossem estas da tele-inversão.
Estas eram idéias perigosas, só os selvagens, chamados de índios e os comuneros criam nisto, mais ninguém. Os selvagens viviam à margem da caverna, comendo com as mãos, num estágio primitivo e aterrador, era impossível viver com eles. Los comuneros eram uns sanguinários, desacreditavam em tudo que era compulsivo, no casamento compulsivo, no trabalho compulsivo. Ousavam discordar da tele-inversão e propunham outra realidade, onde as pessoas valeriam pelo que eram. Mas, o que é uma pessoa, senão seus carros, seu cartão de crédito, sua tele-inversão da realidade, senão seus celulares, senão sua conta-bancária? O que? Estas idéias perigosas acabariam com a tranquilidade e a beleza da sociedade da caverna. Sentir o vento? O vento tinha bactérias e micróbios, havia um super ar-condicionado gigante garantindo o sustento de toda a caverna, ar esterilizado, puro. Para que sentir brisas, ventos e outros inconvenientes da natureza se este gigante do mundo moderno podia nos tirar do estágio de selvageria e barbárie?
A música era tecno, melhor, tecno-brega. Roupas grudadas de plástico, de couro, de outros tipos. Era industrial como esta sociedade, aliás, até o amor era industrial, esterilizado, pasteurizado, enlatado, louro e artificial como tudo. Louras rebolativas cantavam as partes do corpo feminino como postas de carne expostas em açougues. Aliás, depois de celulares e carros, nada como possuir uma loura. Era uma demonstração de status na caverna, ainda que a loura fosse falsificada (90% dos casos). Descendentes de índios, negros e etc, não eram muito bem-vistos nesta sociedade tecno-brega. Aí era um festival de índias louras, de negras louras, de morenas louras, de preconceitos politicamente corretos, mudos e eternizados. Também havia os garotinhos de roupas grudadas e partes pudicas dependuradas nas novas revistas de venda de sexo, agora rebatizadas de “magazines de nu artístico’.
As crianças eram super-gordas (as que não eram pobres e famintas) e comiam seus venenos no mac-caverna do momento, o big-caverna, o big-bobagem, o big, pig, chicken ou qualquer coisa em inglês, que era uma mostra de cultura. Afinal, na caverna, quem entendesse pouco ou nada de inglês era considerado pouco ou mais do que um selvagem, embora pouquíssimos fossem descendentes de anglo-saxões.
As pessoas não sofriam mais, porque o sofrimento era algo “out” não “cult”. A tele-inversão pensava por todos. Não havia excluídos, apenas os “colaterais”. Uma criança comendo lixo, era um colateral, uma necessidade da opulência, no máximo um azarado, algo extremamente suportável, na verdade, com o tempo, ninguém mais via as crianças comendo lixos. Todas as crianças, dizia a tele-inversão, já tinham ido na nova Disney-caverna, que era a maior demonstração de carinho e felicidade que os pais podiam dar a seus filhos.
Não havia guerras, apenas patrulhamentos da nova polícia internacional da Grande Águia, que dominava tudo e era dona da verdade, afinal dominava todas as mais importantes tele-inversões do mundo. Era a democracia da verdade única. Rapazes e moças bem bonitos e arrumados, no jornal da noite, davam a verdade do dia-a-dia. Bombas caindo em algum lugar da caverna eram danos colaterais, protótipos inteligentes de alguma guerra clínica, para o que a tele-inversão fazia a lobotomia da sensibilidade de todos, aliás, sensibilidade era algo profundamente “out”, fora de moda, assim como a solidariedade. O lema era cada um por si, e Deus contra todos.
Demócrito não acreditava nisto. Era sensível, era solidário. Não tolerava sequer mais a Ditadura da Imagem Única da tele-inversão, e queria sair portão afora, para ver o mundo, coisa que não era permitida.
Um dia conseguiu fugir. Seus olhos, acostumados à iluminação artificial, ardiam, seus pulmões se encheram de ar puro, cheios de odores de flores, nos ouvidos, zumbidos de abelhas, pios de passarinhos, sons de um rio próximo. Ele não acreditava, era impossível. Um rio!!!! Na caverna só havia valões, que foram cobertos por serem sujos, mal-fedidos e cheios de sujeira e esgotos. Era uma outra vida.
Tinha medo também, era jovem e ouvira falar que os comuneros matavam por puro prazer e obrigavam as pessoas que saiam da caverna, que saiam do sistema a orgias. O medo de encontrá-los era grande, pois eles dominavam algumas áreas do mundo fora da caverna, as que não eram super-patrulhadas pelos mariners da Super-Águia. Ela não cria nos seus próprios olhos. Era isto que a ditadura da imagem única queria negar? Frescor, luz, sol, natureza, a própria essência da humanidade.
Andou e sentiu fome. Pegou mangas, era a primeira vez que as comia assim, direto da árvore. Acabou por encontrar uma pequena tribo de índios. Tremeu, a primeira coisa que lhe veio à cabeça foi: selvagem, antropófagos. Mas a curiosidade foi maior. Acabou por se chegar, e foi bem-recebido. Eles falavam outro idioma, mas, havia alguns na comunidade capazes de falar com ele, pois tinham tido contato com o mundo da caverna.
Demócrito viveu meses ali. Descobriu um novo sentido. Uma solidariedade diferente. Eram estes os selvagens? Não havia ricos, e nem pobres, nem hipocondríacos, nem alcoólatras, nem deprimidos, nem órfãos ou viúvas desamparadas, nem existiam os “não incluídos”. Havia um sentido coletivo novo, e pela primeira vez na vida, ele sentiu na prática que a felicidade é um bem comum, que os homens são partes de uma mesma essência. Perdeu o tênis da moda, e nem se importou. Seus pés se afundaram no lodo dos rios e redescobriu nadar, pescar, dançar e até amar. Não que ele fosse virgem antes de chegar ali, mas descobriu um sexo sem culpas e sem medo, de entrega e sem submissão, uma visão natural e diferente da sexualidade, onde não havia compulsão e nem se usava a relação como um jogo de poder. Estava encantado e tinha vontade de viver ali para sempre.
Aprendeu deuses outros, que eram pássaros, que eram árvores, que eram cantores, sol e lua, mata e rio. E descobriu que a capivara era sua irmã, que a ema era sua irmã, que o veado era seu irmão. E não achou que estes deuses da mata fossem demônios, ao contrário, viu nestes deuses tanta verdade quanto em Cristo e sua pregação de amor pelo próximo.
Com o tempo sentiu a necessidade de sair dali e retornar à caverna. Quando pensava nisto chegou um comunero para se esconder na aldeia. Foi bem aceito, já estivera ali antes, e havia ajudado os índios a organizar sua resistência, pois não apenas uma vez havia sido arrasada a aldeia, com dezenas de mortos a sujar a história da moderna civilização da super-caverna-globalizada-da-imagem-única.
Teve medo, a idéia que tinha do comunero era péssima. Um dia foi suficiente para aproximá-lo daquele militante comunero. Soube de verdades então que jamais pensara antes. De como a sociedade da caverna poderia ser outra, livre, amante da natureza, sem o trabalho compulsivo, com tempo de sobrar para viver, curtir a natureza, dançar, cantar, sentir o prazer de viver e estar aqui, e a necessidade dos que sabiam desta possibilidade era a de espalhar isto como um evangelho.
Demócrito ficou mais um mês na tribo, aprendeu muitas coisas, recebeu uns livros do velho militante e os devorou, acreditava estar pronto para retornar à caverna e cumprir sua promessa de abrir os olhos de quem pudesse.
Para voltar a caverna contou uma história que se perdera. Foi recebido como um herói que sobrevivera à sanha de ficar seis meses em poder de selvagens. Na primeira entrevista dada em rede internacional à tele-inversão ele começou a falar a verdade. Da necessidade da natureza, do homem se reencontrar com sua essência, de descobrir sua alienação em relação a si mesmo, aos outros semelhantes, de se libertar, não como um processo de uma pretensa liberdade de se fazer coisas inúteis, mas como uma descoberta das amarras que nos prendem em nosso caminho rumo a uma realidade diferente e digna, e da superação destas cadeias. Nunca mais foi chamado à tele-inversão. No dia seguinte todos os principais jornais do grande mundo da super-caverna tinham editoriais feitos pelo Partido da Imagem Única que ridicularizava e depreciava a fala deste dinossauro, que pretendia que a caverna regredisse e voltasse a ser uma sociedade pouco melhor que de índios pré-civilizados. Como abrir mão da miséria na abundância, do homem ser lobo do próprio homem, da competição com cada um apertando o pescoço do próximo, vendendo a mãe e matando o pai por um degrau na escada dos desesperados? Era impossível, outra sociedade que não fosse esta, era natural, era só ver na natureza, o leão devorando a gazela, esta era a lógica, poucos com muito e muitos com nada, a desigualdade se justificava. Não houve, é claro, nunca direito de resposta.
Demócrito publicou alguns panfletos, cerca de 400, o jornal de menor circulação, da Ditadura da Imagem Única teve uma tiragem de 500 mil. Passou a ser o inimigo n.º 1 da caverna. Falava dos pobres e dos lixões, falava da mentira e do monopólio da informação, falava de utopia e beleza. Um dia, como um mártir louco, pregava ao sol escutado por muitos jovens que começavam a abrir os olhos com sua semente. O tiro partiu, certeiro, de um para-militar desconhecido, na cabeça, para parar um cérebro que ousara discordar. Ele caiu, morto...
No dia seguinte, apareceu num muro (a forma de propaganda dos dissidentes da verdade única)
Demócrito vive...
Que nos persigam...
Que nos prendam...
Que nos matem...
Ainda assim voltaremos, e logo seremos milhões!!!!