sexta-feira, 15 de julho de 2011

Balbúrdia das letras: Ainda a memória

Balbúrdia das letras: Ainda a memória: "A questão da memória hoje é, sem dúvida, fundamental. Por isto volto a este assunto. Este ano Orlando Silva faria 90 anos. Nascido em 19..."

Ainda a memória


A questão da memória hoje é, sem dúvida, fundamental. Por isto volto a este assunto. Este ano Orlando Silva faria 90 anos. Nascido em 1915, este mulato, filho de lavadeira, tornar-se-ia um dos maiores nomes e uma das maiores vozes do rádio. Chamado de “O Cantor das Multidões”, no auge do sucesso não podia sequer sair às ruas tranquilamente. Com uma voz potente e marcante, ele cantou os maiores sucessos da era do rádio, dos maiores compositores da época, gente como Orestes Barbosa, Ari Barroso, Wilson Batista, Geraldo Pereira e outros do mesmo naipe. Morreu praticamente no esquecimento. Os anos não lhe fizeram justiça, e como muitos outros ídolos brasileiros, o cantor das multidões se tornou um ilustre anônimo, cunhou a frase “No Brasil a gente não pode envelhecer”.
Como ele, desbotados, grandes ícones da nossa música vão se tornando grandes mistérios para a nova geração. O rei do Baião, Luiz Gonzaga, morto não faz muito tempo, já está se tornando alguém tão distante no tempo para nós como um Domingos Caldas Barbosa, ou Chiquinha Gonzaga. Os garotos que fazem o péssimo forró universitário cada vez menos entendem daqueles que disseminaram e tornaram o forró, o xote, o xaxado, a embolada músicas populares. Pergunte a algum destes garotos de penteado impecável quem foi Humberto Teixeira e Zé Dantas e haverá um silêncio constrangedor. Na verdade, eles sequer conhecem “Quinteto Violado”, vivos e atuantes, uma das joias raras da nossa cultura nordestina. Na forma pronta de fazer sucesso o que mais vale é a indumentária. Uma maneira de tocar repetitiva e monótona, letras repetitivas, meninas vestidas com saias minúsculas, garotos bem produzidos. Alguns ainda defendem isto como “cultura nacional”. Ora, a questão é bem mais complexa do que esta. Lembro sempre a história contada por Galeano sobre Portinari. Militante do PCB, o grandioso pintor foi consultado pelos camaradas, que queriam sua aquiescência, seu nome na campanha a favor da arte realista. Sem muito arengar, nosso gênio, fumando seu charuto respondeu de forma simples: – Para mim é arte, ou é merda!
A questão da memória, da identidade cultural é muito mais complexa do que um nacionalismo infantil que beira à histeria e o fanatismo. É a questão de valorar e preservar tesouros, patrimônios que se não forem cantados e recantados pelas novas gerações virarão apenas fonogramas no MIS (Museu da Imagem e do Som). Memória não pode ser apenas pequenas homenagens em centros culturais. Memória é “Carinhoso” e “Asa Branca” sendo cantados geração após geração. Memória são os meninos da Mangueira aprendendo o batuque, a cadência e o samba, não só os da Escola que vão para a Avenida, mas os sambas deste imenso caudal, desta torrente que é Mangueira. Os sambas de Cartola, Nélson Sargento, Padeirinho, Herivélton Martins, Geraldo Pereira, Wilson Batista, Nélson Cavaquinho, Guilherme de Brito e todos os outros feitos baixo o pendão da verde-rosa.
Memória é o “Encontro da Família Portelense”, acontecimento que mudou a lógica das escolas de samba no Rio de Janeiro. Memória é os portelenses e não portelenses irem para a quadra da Velha Águia escutar os sambas de quadra que estavam caindo no esquecimento. É a juventude poder ver a velha guarda cantar e dançar os sambas de Zé Kéti, Paulo da Portela, Argemiro, Nonato, Casquinha, Monarco, Mauro Diniz, Jair do Cavaco e tantos grandes portelenses, recuperar o sentido de ser da escola de samba, a confraternização e a criação de arte dentro da própria escola. É ver o filho de Cabelinho, grande passista, entoando os sambas que já têm mais de meio século, é a transmissão da herança cultural, a criançada começar a cantar o velho para poder criar o novo. É mostrar que o que é velho não é ruim, que esta dicotomia entre o velho e o novo só serviu para nos tornamos bobos da corte sem memória. Com vergonha de festa junina e com orgulho de Halloween. É ficar babando ao ver tia Eunice e Surica soltando aquelas vozes que parecem terem sido trazidas ontem d´África nos navios negreiros.
Memória é bem mais amplo do que um nacionalismo babaca, mas está intimamente relacionado ao reconhecimento de que fazemos uma cultura de qualidade. É saber distinguir o joio do trigo, Vavá de Zeca Pagodinho. Enquanto o Vavá, produto de mídia, menininho enfeitado nos salões da beleza e nas academias de ginástica, nada canta e chega ao besteirol de dizer que o samba de raiz acabou, cai no lixo da história e foi esquecido com a mesma velocidade que galgou o sucesso. Zeca Pagodinho é a antítese disto tudo. Ele conseguiu galgar o sucesso não pela mídia, mas apesar da mídia. Criado nas tamarineiras do Cacique de Ramos, parceiro do falecido e saudoso Beto Sem Braço; irmão de fé de Sombrinha, Arlindo Cruz, Almir Guineto, Mauro Diniz; Zeca é a síntese do que há de melhor no samba de raiz, no pagode verdadeiro, nas rodas de samba que insistem em cantar nossa memória. Rodas que brotam como cogumelos após a chuva e que rememoram João Nogueira, Roberto Ribeiro, Clementina de Jesus, Clara Nunes, mantêm o samba popular e o recriam, na dialética de evolução que parte do velho para criar o novo, em que pese a cara feia que os intelectuais puristas fazem a este tipo de samba. Talvez eles estejam esperando toda uma geração de bons sambistas morrerem para poderem reconhecer, no futuro, nas cátedras assépticas das universidades o valor que toda uma geração do samba de raiz teve, não só esteticamente, mas como foco de resistência. Como dizia a música que foi uma verdadeira bandeira: “Podemos sorrir, nada mais nos impede, não dá para fugir desta coisa de pele, sentida por nós, desata os nós, sabemos agora, nem tudo que é bom vem de fora”. Não dá para se ter dialética, evolução em cima do nada. Quem não sabe a que cultura pertence não pode criar algo realmente novo que tenha conteúdo e referência. Pagodinho furou o cerco da mídia e consegue ser o mensageiro de gente com Serginho Meriti e Candeia. Ele faz sucesso não pela mídia, mas contra a mídia.
A memória é uma questão política, é uma questão étnica, de referência. Veja a verdadeira guerra que os cultos pentecostais, de influência estado-unidense abriram contra os terreiros. Tudo que soa à negritude agora passou a ser pecado, do diabo. Assim, o matiz mais criativa de nossa cultura – aquela que nos legou a cozinha e o som, que resistindo nos terreiros foi capaz de dar a plataforma para uma verdadeira cultura brasileira (tão criativa é a raiz africana que Picasso foi buscar nas máscaras de guerras africanas os motivos do cubismo) – agora passa a ser perseguida. Chegamos ao cúmulo de ver, numa emissora de TV dominada por um pastor, a novela escrava Isaura sem Candomblé. Como se a música, os cultos, os falares, tudo não fosse a força que manteve e possibilitou a resistência. O quilombo não foi apenas o foco da atividade econômica livre de Palmares. Foi o local onde o negro pôde ser. Pôde cultuar seus deuses, falar sua língua, dançar e cantar aquilo que era seu. De uma hora para outra estamos passando por um verdadeiro FASCISMO CULTURAL, onde o negro pode ser admitido na sociedade, desde que embranquecido.
E não pense que é só a direita que quer o negro embranquecido não. Circula pela net um texto que diz que no dia nacional da resistência negra lutar pelo negro é lutar pela igualdade econômica, é fazer oposição ao governo Lula. Desculpem-me os companheiros, mas há um equívoco enorme nisto. Não, não é lutar contra o preconceito racial simplesmente lutar pela igualdade econômica, nem lutar contra o governo Lula (e nem vou entrar na polêmica sobre o governo Lula) é lutar contra o preconceito racial. Mesmo que haja uma sociedade socialista a questão da negritude não estará resolvida neste país. É muito triste ver que no fundo a esquerda NEGA A QUESTÃO ÉTNICA EM NOSSO PAÍS. A partir de um palavrório pseudoprogressista de que somos apenas uma raça, apenas uma espécie. Sim, isto é uma grande verdade, mas e daí? Onde se chega com esta conclusão? A de que basta a luta econômica? A questão da etnia é algo que não pode ser varrido para debaixo do tapete. Sem se basear em preconceitos biológicos é fácil ver que há diferenças culturais concretas. Ora, qualquer projeto, seja socialista, seja liberal, que não leve em conta estas diferenças, no fundo quer conservar o modus vivendi branco europeu. O socialismo por si só não vai resolver a questão étnica, a questão de respeito à cultura africana. No dia Nacional da Consciência Negra não se pode festejar Zumbi só como líder político. Deve se festejar o quilombo como portador de UMA ALTA CULTURA TÃO IMPORTANTE E MAIS AVANÇADA EM DETERMINADOS ASPECTOS DO QUE A EUROPEIA. É fundamental na luta pela memória enfrentarmos a questão do matiz negra do nosso ser brasileiro. Negar esta discussão em cima de uma suposta “democracia racial” na verdade é perpetrar, eternizar a vergonha com relação à cultura negra, a ideia preconceituosa de que ela é uma espécie de “folclore” que deve ser cultuada em determinado dia e depois esquecida, já que temos coisa mais importante a discutir.
Não há possibilidade de qualquer projeto de povo, de nação, sem que consigamos nos analisar, sentarmos numa espécie de divã coletivo e superarmos nosso complexo de vira-lata. Dentro desta análise, reavaliar o matiz e a matriz negra que é fortíssima em nossa cultura é fundamental para um projeto autônomo. Ora, pensemos todos juntos, por que a periferia quando quer protestar necessita de um passaporte estado-unidense para fazer música. Vai buscar nos EUA, no Rap estado-unidense, um modus vivendi, em lugar de utilizar a cultura ancestral do samba? Será que é a eterna mania de copiar, já acusada por Sérgio Buarque de Holanda, ou é manutenção do complexo de vira-latas? Ora, cultura negra para ter valor tem de ter selo made in USA. Em que os meninos do Brooklin se avantajam a Candeia? Nele havia todo um projeto embrionário de revalorização de nossa negritude e a possibilidade de a partir dela construir uma resistência: “Eu não sou africano. Nem norte-americano. Ao som da viola e pandeiro. Sou mais o samba brasileiro”. Isto não era negar a matriz africana do samba, mas dizer que no samba já havia algo mais, a síntese brasileira, o reconhecimento do valor da cultura popular. Dentro desta visão ele chegou a criar uma escola de samba diferente, a Quilombo, que tinha toda uma ideologia de resistência.
A questão da memória carrega consigo, está grávida das questões de solução da vida do povo brasileiro. Não pode haver autonomia nacional sem autonomia cultural. Não há projeto político possível de Brasil sem projeto cultural autônomo. Qualquer projeto de nação que fique no economicismo está fadado ao fracasso. Na jovem república espanhola havia todo um projeto de cultura popular. Alguns poetas, como Antônio Machado, foram assassinados por sua militância política. Frederico Garcia Lorca, talvez o mais genial deles todos, foi assassinado por sua militância cultural. Sem nunca ter realmente se declarado republicano, seu teatro popular, sua ânsia de levar a cultura a todo povo, e também de proclamar a cultura multifacética de todos os povos da Espanha, tornou-se perigosamente subversiva para os bandidos fascistas.
Todas as ditaduras, as declaradas, e as econômicas, como a nossa Ditadura da Imagem Única, são inimigas de qualquer projeto de autonomia e de valorização cultural. A memória só pode ser evocada como coisa bizarra ou pitoresca, como folclore. A maneira de começar a ferir de morte a Ditadura da Imagem Única (que uniformizou o jeito de pensar, sentir, fazer, se vestir, escutar música, comer) é nos reconhecermos como seres biodiversos, filhos de uma outra cultura não hegemônica, empreendermos a grande aventura de resgatar esta cultura que está sendo, dia após dia, relegada ao esquecimento. No dia que não tivermos mais memória, não haverá mais projeto de autonomia para o nosso país. Nossa memória é nossa esperança. Mas não uma memória passiva e inútil, fossilizada. Uma memória viva e criativa, que canta e dança, que cria um novo a partir de sua caudalosa e profunda raiz popular.

Balbúrdia das letras: A memória

Balbúrdia das letras: A memória: "A Memória O grande sambista Marquinhos de Oswaldo Cruz falou uma frase lapidar, que trago guardada como uma adaga: “cultura é aquilo que..."

A memória


A Memória

O grande sambista Marquinhos de Oswaldo Cruz falou uma frase lapidar, que trago guardada como uma adaga: “cultura é aquilo que a gente escolhe para ficar na memória”. Uma verdade tão simples e extremamente complexa, contraditória, dialética em movimento. Numa entrevista que ele havia concedido para o jornal do Sindicato dos Trabalhadores da Justiça Federal, ele nos disse que Dona Ivone Lara havia mostrado a ele que antigamente chorinho era para dançar. Os músicos iam pelas casas do subúrbio tocando e se faziam bailes com a cadência do chorinho. Esta é uma das coisas que estão extintas, perdidas para sempre, entre outras que nossa cultura plastificada vai condenando à extinção.
A música brasileira é, sem dúvida nenhuma, uma das mais ricas, senão a mais rica do mundo. Nenhum outro povo tem tanta variedade com características intrínsecas tão marcantes, delineadas e distintas entre si. Que país pode ter em seu território samba, congo, marchinha, samba-canção, samba-de-roda, frevo, xote, maxixe, samba-de-breque, bossa-nova, baião, fora uma série de músicos geniais que fogem às classificações. Como classificar “Construção” de Chico Buarque de Holanda, a não ser como música de outro mundo?
Invejo realmente os estado-unidenses (e olha que sou insuspeito para falar dos Estados Unidos, embora não confunda o anti-imperialismo com xenofobia, mas tenho severas reservas à apologia que se faz no nosso país aos ianques) quando vejo a adoração que os negros do jazz e do blues conseguiram. Monsueto, Candeia, Herivélton Martins, Cartola, Zé Kéti, Nélson Sargento, Ismael Silva, Ataulfo Alves e – é melhor eu parar de citar nominalmente, ou este artigo não acabará jamais – todos os outros crioulos e branquelos do nosso samba são tão bons quanto os bambas do jazz. Agora, quantos jovens até os 30 anos de idade já ouviram falar de Candeia?
É um tesouro cultural esplêndido que vai sendo perdido por cair no esquecimento. É mais fácil seguir o liquidificador cultural da globalização. É difícil para quem escutou Candeia e Wilson Batista conseguir ver qualquer graça numa “música” de Gabriel Pensador ou Marcelo D2. Nem a desculpa de que as músicas que eles fazem é ruim porque eles são pobres ou não tiveram acesso à educação musical cola; Cartola era gênio, seus poemas “As Rosas Não Falam” e “O Mundo É um Moinho” são comparáveis a textos de Drummond e Bandeira, suas músicas são tão boas quantos as dos maestros Francis Hime e Tom Jobim e ele era pobre, semialfabetizado. Foi faxineiro, porteiro, lavador de carros, comeu o pão que o diabo amassou, mas nada disto conseguiu calar seu talento e seu gênio.
Primeiro a ditadura militar começou o processo de emburrecimento do país. A perseguição a nossos melhores expoentes levou a que eles fossem substituídos por artistas “neutros”, aqueles que não sabem de onde vêm e nem para onde vão. É sertanejo vestido de caubói estado-unidense, cantando música que nem corno aguenta, é forró universitário que parece ter sido feito por analfabetos de pai e mãe (o forró feito pelos analfabetos, o pé de serra, todavia, era e é genial), é samba mela-cueca, feito com letra e melodia igual, por um monte de mauricinho engomado que mais parecem ter raiva da música. Vale muito mais o visual, a “beleza”, as horas de academia e o empresário do que o talento.
Esta ditadura atual, a burra Ditadura da Imagem Única é bem pior. Ela diz o que devemos manter na memória e o que devemos esquecer. Não há mais avaliação de qualidade, os conceitos são frívolos. O conceito único é o de velho e novo. Novo é o que eles nos disserem que é novo. Assim, o grupo inimigo da música “É o Tchan” pode nos ficar irritando durante anos seguidos com sua perseguição à música de boa qualidade, mas, cada relançamento, feito pela mídia, das louras e das morenas da bunda music era festejado como a “grande novidade”. Enquanto isto, uma grande quantidade de partideiros – que continuam a manter a tradição da música que veio d´África e ganhou corpo nos nossos guetos, nos nossos subúrbios, nossos morros, nossos quintais – foram relegados ao ostracismo ou pasteurizados até ficarem irreconhecíveis e aceitáveis para a Vênus Platinada da Globo.
Mais do que horas no violão, valem as horas na academia. Uma geração emburrecida pelo culto ao corpo usa como totem o som berrante do carro, a xingar todas as mulheres de cachorras, vagabundas e burras, a glorificar os aspectos mais vis da sexualidade. É claro que não faltam “críticos”, muito bem remunerados e com grande espaço na mídia, para defender este atraso, este retrocesso, como o ápice da “liberdade”.
Quando Chico Buarque de Holanda fez 60 anos, o mais importante poeta vivo brasileiro (incluído os que escrevem apenas livros) não teve um único especial em nenhuma rede de televisão. Toda a semana no programa de imbecilização coletiva do “Faustão”, todavia, você podia ver todos aqueles que participam docilmente do sistema de venda por atacado de CDs. Gente sem talento, em quem as gravadoras despejam milhões de dólares para tentar lucrar bilhões. Quem quiser escutar o novo CD do Paulo César Pinheiro (se você perguntou “quem?”, leitor amigo, estás mal, muito mal) vai ter que ficar catando, nas lojas que vendam o selo “Biscoito Fino”. Um dos maiores compositores da história da MPB hoje faz música para 20 mil pessoas. Kelly Key vende dois milhões.
Uma mentira dita mil vezes acaba por se tornar uma verdade. A verdade que a mídia repete é: “o povo gosta de merda, não adianta dar coisa boa para o povo”. Mentira cômoda de quem é tutor e executor de um processo de emburrecimento que já dura 20 anos. Se Paulo César Pinheiro e Chico Buarque tivessem 1/10 do espaço que tem Latino e Kelly Key, eles venderiam o mesmo com muito menos esforço e gasto inútil de dinheiro com propaganda. A maior parte do dinheiro gasto hoje com CDs é na propaganda. As grandes gravadoras sabem que não têm artistas na mão, mas sim criações de mídia, que necessitam de bilhões para se manterem como produtos vendáveis. São produtos, como Corn Flakes e Danoninho, e não artistas. Necessitam de investimentos diários para se manterem vivos. São descartáveis e substituíveis, porque não têm conteúdo nenhum.
Até a década de 60, Chico Buarque vendia tanto quanto Roberto Carlos. Mas imagina como seria perigoso se Aldir Blanc, Chico Buarque, Paulo César Pinheiro, Paulinho da Viola e outros de uma vanguarda cultural fossem os ídolos desta nova geração? Ora, é bem mais cômodo dominar uma juventude que canta “quer dançar, quer dançar, o tigrão vai te ensinar” ou “paga bolete, paga bolete” do que uma juventude que canta “por que beber esta bebida amarga, tragar a dor, engolir a labuta. Mesmo calada a boca resta o peito, silêncio na cidade não se escuta. De que me vale ser filho da santa, melhor seria ser filho da outra, outra realidade menos morta, tanta mentira, tanta força bruta”.
Repito, uma mentira dita mil vezes acaba por se tornar verdade. Não aceite esta coisa da mídia de que o povão gosta de merda. É isto que eles nos querem fazer crer, para levar à frente, sem oposição, este processo de emburrecimento, tendo seus meninos dourados da mídia como ícones da nova geração. Até os “caras-cabeça” são os da oposição consentida. Gabriel Pensador está mais para garoto propaganda da Rede Globo do que para alguém que realmente provoque qualquer dano ao sistema. Nem passa perto das músicas profundas de protesto de um Gonzaguinha.
Assim o sistema de televisão, que é uma concessão de serviço público, mas é propriedade de três ou quatro megamilionários, pode continuar a fazer o que quer com a mente da população, ou um desserviço ao povo. Destruindo a verdadeira cultura popular e substituindo esta por uma série de criações de mercado, que são nocivas à inteligência.
É terrível ver, vira e mexe, especiais relembrando Elvis Presley e outras coisas de qualidade similar, made in USA, enquanto o Jongo da Serrinha fica relegado ao espaço dos teatros e a boa vontade de verdadeiros heróis de vanguarda popular. O processo de recuperação da memória popular não pode ficar restrito a espaços como o queridíssimo Teatro Rival, nós devemos levar esta discussão para espaços maiores. Torná-la um movimento de recuperação de nossa identidade, sem ter vergonha de sermos tachados de xenófobos ou puristas. Esta se tornou uma pecha incômoda e muitos têm medo dela. Defender nossa cultura não quer dizer menosprezar nenhuma outra. Não pode haver cultura INTERNACIONAL SEM CULTURA NACIONAL. “Inter” quer dizer relação entre nações, entre povos. Ora, se todos cantarem Rock, que cultura internacional será esta? Será uma cultura monocromática, enfadonha, sem graça, repetitiva, onde um único pensar, um único modo de ser (o american way of life) é o que pode ser admitido sem ser tachado de velho ou parcial.
Sem xenofobias, estamos abertos para receber Joan Baez, Elza Fitzgerald, Billy B. King e tudo de maravilhoso que a cultura dos EUA tiver para nos legar, mas também estaremos abertos para Violeta Parra, Fito Paez, Vitor Jarra, Amália Rodrigues, Pablo Milanez, Mercedes Sosa, a nosso irmãos latino-americanos, nossos ancestrais africanos e europeus, ou seja, uma visão mundialista de cultura não é uma visão centrada na cultura dominante, mas uma visão diversa, onde cada uma cultura nos possa legar o que tem de melhor, E ONDE NÓS, COMO POVO BIODIVERSO, COMO POVO QUE SE RECONHECE, DE FORMA ORGULHOSA NO ESPELHO, COMO PORTADOR DE UM GRANDE TESOURO CULTURAL, também tem muito a legar. Nós temos Beth Carvalho, Clara Nunes, Elizeth Cardoso e Elis Regina, grandes damas de nossa MPB, capazes de passar para o mundo nossa genialidade com a mesma emoção e beleza que tem uma Ella Fitzgerald.
A questão da memória é algo crucial neste momento no Brasil. Não só temos vergonha de nossa memória, como hoje temos vergonha de defendê-la. Na verdade, a esquerda olha para o próprio umbigo e não tem projeto cultural autônomo. Vê cultura como algo acessório, não tem nenhum projeto de nação. Quando a esquerda se aproxima hoje em dia do movimento cultural é para pedir voto ou apoio, mas nenhum movimento ou partido de esquerda tem qualquer projeto para mostrar ao povo brasileiro que o projeto de recuperação de sua identidade anda de mãos dadas com um projeto político autônomo de Brasil. No processo chileno se dizia que o governo Socialista de Salvador Allende se mantinha com reformas e canções. A efervescência cultural chilena da época mostra como é indissolúvel a transformação cultural da transformação política.
Há gente da esquerda que se julga ultrarrevolucionária e tem coleção dos discos da eguinha pocotó, não sabe quem é Candeia e pouco se interessa pelo destino do samba carioca. Eu coço a cabeça e fico preocupado. Que projeto de país é este? São tão míopes que não conseguem ver que um jovem que começa a cantar Candeia já faz uma opção política de consciência, ainda que não se filie a nenhum partido político?
Cantar Cartola é resistir, é tão ou mais importante do que votar num candidato de esquerda ou se filiar a um partido “revolucionário”. Ainda que me digam que há conservadores que cantam Cartola. Tanto melhor, o conservador na política que canta o mestre Cartola mostra, na prática, o porquê a esquerda brasileira não conseguir avançar um centímetro na disputa do coração e das mentes do povo. A esquerda brasileira tenta conquistar um país que, no fundo, desconhece, ignora e despreza. Eguinha pocotó é opção política de direita em termos de cultura, é optar pelo esquecimento, pelo desprezo de nossa raiz popular cultural, pela cópia servil da pior forma de música estado-unidenses cantada em português.
Memória é coisa séria. Tão importante quanto preservar a Mata Atlântica é preservar as marchinhas (que estão em extinção), tão crucial quanto recuperar a Baía de Guanabara é recuperar o forro pé de serra, tão vital quanto expandir a educação fundamental a 100% dos brasileiros é fazer com que esta mesma totalidade saiba a importância de sua própria cultura, possa ter acesso a amar Geraldo Pereira, João Nogueira, Assis Valente e todos os grandes músicos brasileiros que têm suas músicas ameaçadas de extinção.
Ou enfrentamos a luta pela nossa memória e identidade, ou em 20 anos seremos um povo de cultura completamente estado-unidense.

Balbúrdia das letras: O Velho e o Novo

Balbúrdia das letras: O Velho e o Novo: "Lênin utilizava em seus textos da figura de um pretenso intelectual, que, na falta de adjetivos para colocar em seus cartões de visita, ..."

O Velho e o Novo


Lênin utilizava em seus textos da figura de um pretenso intelectual, que, na falta de adjetivos para colocar em seus cartões de visita, cunhou “contemporâneo”. Com isto, o sujeito imbecil considerava-se à frente de seu tempo. Hoje, nesta anedota, o adjetivo seria trocado pelo surrado “moderno” e entraria no cartão de visitas de 90% das pessoas.
Todos querem ser “modernos”. A modernidade passou a ser a qualidade mor, o parâmetro pelo qual todos os outros valores são medidos e julgados. Uma televisão é moderna, um computador é moderno, um carro é moderno; um livro é moderno, uma escultura é moderna, uma música é moderna; um certo tipo de comportamento é moderno, um modo de falar é moderno, um corpo malhado é moderno. Uma pessoa é moderna. O velho é feio, não é de se espantar que hoje as pessoas têm verdadeiro horror a envelhecer.
A antítese fundamental na sociedade passou a ser entre o velho e o novo. É a sociedade da fugacidade e do consumo, que consome produtos, que consome pessoas. Essas passam a ser avaliadas segundo o critério da modernidade: roupas, cabelo, forma física, há um padrão, é um uniforme-medíocre da modernidade. Não para por aí, o gosto artístico, musical e literário também tem de ser “moderno”. Se você for ao MAM e vir um bidê exposto, aplauda! É moderno! O critério (único) para as artes plásticas também é a modernidade (como falta de qualquer outro critério para avaliação).
E quem são os donos dessa modernidade? Críticos de mercado têm de criar o conceito de “moderno” a cada dois minutos para que este possa ser vendido. A obsolescência programada chegou até a arte para que esta seja acima de tudo uma mercadoria. Outro dia havia umas fitas plásticas amarelas e pretas (daquelas que obstruem a frente de prédios que estão desabando) atando duas colunas bem sólidas do edifício da Avenida Rio Branco 1, no Rio de Janeiro. No chão uma placa: “Assimétrico”. Parecia uma interdição, mas era uma “obra de arte”. Moderno!
Para quê critérios estéticos? Discussões sobre forma, conteúdo e beleza? Tudo se subsume ao “moderno”. Isto me lembra o caso contado por Eduardo Galeano, sobre uma visita que Jorge Amado e Pablo Neruda fizeram, na Europa, a uma exposição de um pintor guatemalteco. Fazia poucos meses Arbenz havia sido derrubado, o subsequente bombardeio produzido pela aviação estado-unidense matara 50 mil guatemaltecos, compatriotas do pintor (que fazia sucesso com uma exposição com um monte de quadros abstratos, linhas, e cores, e borrões). No livro de visitas, Neruda escreveu: “mierda!”
Não que a arte tenha de ser utilitarista ou formal. Picasso explodiu os conceitos, trouxe as máscaras africanas ao gosto europeu, mas conseguiu pintar o holocausto do bombardeio nazista em seu apocalíptico “Guernica”. Portinari reproduziu toda a dor brasileira com seus trabalhadores braçais e suas crianças famintas retratadas de forma distorcida, onde o sentir e o pesar davam a forma. Garcia Marques dilatou todos os significados em seu esplêndido, imoral e imortal “Cem Anos de Solidão”. Cortázar perverteu todas as formas, marcas e significados, brincando de amarelinha com seus cronópios e famas. Mas em todos se vê um conteúdo, profundidade, essência e humanidade.
A redução de todos os conceitos a um embate entre o velho e o novo é uma necessidade da sociedade de consumo programado, que necessita de arte e pessoas com prazo de validade. As discussões: local x universal, arte pela arte x arte pelo homem, forma x conteúdo, identidade cultural x intercâmbio, autonomia x renovação, herança cultural x renovação; todas as grandes discussões que dão vida e dinâmica à arte ficam soterradas, o importante é que a obra de arte seja “moderna”.
A música do Harmonia do Samba é péssima? Não, é moderna. A música de Pixinguinha é magnífica? Não, é velha. Todos os conceitos se resumem a um só, se algo é velho ou novo. Lembrem-se da Tropicália chamando o nosso poeta maior, Chico Buarque de Holanda, de velho, sendo tachado de nosso “avô”. Lembremo-nos da resposta magistral dele: “nem toda lucidez é velha, nem toda loucura é genial”. Se a Tropicália teve o poder de trazer novas formas para a MPB, teve também o aspecto negativo de reduzir a discussão ao questionamento se algo é simplesmente “velho” ou “novo”.
O grande questionamento que se faz é: O que é velho? O que é novo? Como o rock pode ser novo se é mais velho que a bossa-nova? Como o blues pode ser uma inovação se tem a mesma origem e percurso parecido com o do nosso samba? E não se está sequer avaliando a qualidade desses gêneros, pois em todos eles têm obras-primas dentre as obras criadas e, do outro lado, lixo.
Quem estabelece o que é novo? A resposta pura e simples é: O Deus Mercado, escrito com D maiúsculo, já que ele é hoje a grande divindade da humanidade. Tudo que existe passa pelo buraco da agulha do valor. Arte passou a ser, então, aquilo que vende, aquilo que o mercado valora como arte. Inspiração? Talento? Valores humanos? Eternidade dos conceitos de uma obra? Paradigmas da condição humana? Sensibilidade? Emoção? Nada disto, a definição é concreta e simples: ARTE É AQUILO QUE VENDE.
Da mesma maneira que o mercado produz geladeiras em série, para serem trocadas de dez em dez anos, ele produz artistas em série para serem trocados de dez em dez meses. É o grande sacrifício da arte no altar do Deus Manon. Aquele que não ser rende é trucidado. É a nova esfinge, que mesmo decifrada, devora a todos que se lhe opõem.
Tudo é arte e todos são artistas, dita-nos o Deus Mercado, cuja obra capital e emblemática, seu totem, é o Big Brother. Se todos são artistas, ninguém o é. Na discussão do que é bom, artisticamente falando, está sempre em lugar primeiro o lucro. Como criticar Paulo Coelho, se ele vende oito milhões de livros? Como questionar Kelly Key se ela vende dois milhões de discos? São os novos gênios, os expoentes culturais da era de aquário.
Neste contexto, os artistas de talento e qualidade sobrevivem apesar do e contra o mercado. Muitos seduzidos pelo canto da sereia, como o Fausto de Goethe, vendem a alma ao diabo para ter sucesso, seus 15 minutos de fama, efêmera, no altar de Manon. Só que a indústria pornô-fonográfica é cruel, enforca, esquarteja e enterra, 20 minutos depois do sucesso, o ídolo que acabara de criar. Aquele que começou cantando Candeia e Cartola, termina cantando o que a mídia quer nos programas dominicais, soletrando coisas ininteligíveis, para ganhar disco de platina, músicas que mais parecem terem sido compostas por doentes mentais.
Na nossa sociedade tudo e todos viram produtos de consumo. Velhos que gastam fortunas para parecerem caricaturas de adolescentes desenhados por um artista plástico de gosto duvidoso. Na sociedade de consumir pessoas envelhecer é crime. E não é só na aparência, é crime escutar Tom Jobim ou Roberto Ribeiro em público. Logo vem a pior xingação possível nos dias de hoje (pior do que filha da puta): velho!
Não é possível constituir o novo sem uma antítese dialética com o velho. Não se pode construir algo sobre o nada. Sem o canto dos escravos não haveria o blues e o samba. Sem o samba não haveria bossa-nova. Sem a cultura grega não haveria a ética e a filosofia modernas. Não se constrói uma nova forma de cultura sem alicerces, sem pisar na pegada dos antepassados, conhecê-los, refletir sobre o que fizeram, para negá-los no que fizeram de ruim ou se omitiram em fazer, mas reafirmá-los no que fizeram de fértil.
Ser jovem, contemporâneo ou moderno não é qualidade nenhuma. O novo real, o realmente revolucionário, só pode sair das entranhas de um mundo dado e conhecido. Quem não sabe donde veio, qual sua cultura e identidade, não tem como criar um novo caminho. Tolstoy dizia: “Pinte sua aldeia e será universal”. Ele escreveu sobre a Rússia para os russos, mas suas obras se imortalizaram e tocam o coração de brasileiros, africanos, asiáticos e por isto foram imortalizadas.
Há que se recuperar os valores que realmente importam na arte e na vida, entender que a dialética entre o velho e o novo é um movimento do conhecimento, tentativa de superação em termos de qualidade, do belo e das ideias que foram construídas por nossos antepassados, nunca a ignorância imbecil de nossa identidade.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Balbúrdia das letras: Pinte Tua Aldeia e Serás Universal

Balbúrdia das letras: Pinte Tua Aldeia e Serás Universal: "Tolstoy era gênio. Em poucas palavras, ele expressou uma concepção humanista de arte na qual é possível enxertar dentro do multifacetado..."

Pinte Tua Aldeia e Serás Universal


Tolstoy era gênio. Em poucas palavras, ele expressou uma concepção humanista de arte na qual é possível enxertar dentro do multifacetado universo humano cada particularidade de um povo, sem violentar seu modus vivendi, sem depreciar um saber local diante de qualquer outro dominante, visto como supostamente superior.
Tolstoy, em sua Rússia, descreveu os dramas, as dores, as alegrias e as esperanças de seu tempo e de sua grande vila; com isto conseguiu pintar obras-primas indeléveis que até hoje fascinam e inspiram pessoas em Burkina Farso, no Brasil, ou nas Ilhas Maldivas. Se ele houvesse simplesmente seguido um modismo literário qualquer e perseguisse, a todo custo, construir modelos prontos a partir dos polos culturais da época, não seria até hoje amado, compreendido, irmanado aos homens de todas as aldeias e línguas. Não teria conseguido ser universal ou eterno. Foi através da particularidade, de entrar no pitoresco dos homens de sua terra que ele conseguiu se tornar global.
Nós também somos de uma grande, imensa aldeia chamada Brasil, tão grande e tão diversa quanto a Rússia de Tolstoy. Aldeia de ritmos e falares diversos (embora de uma só língua). Somos membros desta tribo brasileira irmanada a todas as outras coirmãs da América Nuestra, América Latina. Árvores de raiz semelhante, com pequenas peculiaridades que nos diferenciam, mas que se alimentam do mesmo húmus desta terra, América de imensa beleza e dor, de passado único com um tesouro cultural comum a todos os seus povos.
Somos seres humanos biodiversos. Para nós tornamos homens precisamos ter nascido e crescido sobre a herança cultural de algum lugar, falando uma determinada língua que já nós é transmitida prenhe de tradições dos povos que a herdaram, modificaram, fecundaram. E não só o idioma é um regalo, um patrimônio comum, há a música, os ritos, as crenças coletivas. Para nós tornamos homens de forma harmônica temos de ter uma raiz fortemente fincada neste dolo ancestral comum.
E que tesouro imenso é este: a aldeia Brasílis, fecunda de sul a norte de um povo rico de cultura oral e musical, criativo, solidário e esperançoso. Uma herança, todavia depreciada por seus próprios filhos. Vivemos a era da globalização fascistizante, onde se tenta construir um falso universal através da anulação, da destruição das diferenças, das culturas dos outros povos que não o que domina o mundo. Uma Ditadura da Imagem Única a criar um modo de pensar pasteurizado e patético, onde se anulem várias nuances da humanidade. O grande “prêmio” nesta perda de raiz e identidade seria de, no fim do processo, vestidos com gigantescas camisas dos jogadores de basquete da NBA, virarmos suburbanos de Miami ou do Brooklin.
Neste processo de americanização do mundo, de hamburguerização e roqueirização (popificação) da juventude, há que resistirmos! Recriar a diversidade abrindo o baú de variedades culturais de cada povo. Ressaltando sua qualidade e suas obras-primas. Mostrar ao mundo, por exemplo, como da dor da escravidão pôde nascer a sensualidade do samba, ou como das agruras da seca, como por milagre, surgiu o pintor primitivista genial do forró, Luís Gonzaga, ou o vate do drama nordestino, Patativa do Assaré.
Ressaltar nosso ser diferente, nem melhor, nem pior, mas único, e maravilhoso por conta disto, desta nossa diversidade tão grande dentro do universo brasileiro e latino-americano. Entender que antes e melhor que Madona e Michael Jackson; vêm Violeta Parra, Mercedes Sosa e Victor Jarra. Que nossas tribos latinas têm o matiz comum do sofrimento e da exploração. Que nossos cantares e línguas se irmanam, posto que nosso destino foi e é traçado a ferro e fogo desde o início para que nos separemos, para que os irmãos fiquem a se olhar com temor e ódio. E que só poderemos nos reconstruir como povos na tarefa comum de construir uma única nação multifacetada: a nação latino-americana, máximo sonho de Bolívar.
Como diz a música de Armando Tejada Gomes:
Todas as mãos, todas.
Todas as vozes, todas
Todo o sangue, pode
Ser canção ao vento
Canta comigo canta,
Irmão americano
Liberta tua esperança
Com um grito na voz”.
João Cabral de Melo Neto ensinou-nos que um galo sozinho não constrói uma manhã. Mas que seu canto acorda e envolve outros galos, que, num coral gigantesco, tecem o manto da aurora.
Assim é nossa missão, cantar nossa aldeia, grande como é o Brasil, grande como é a América Nuestra, em nossa língua, em nosso ritmo. Renegar o amo que há dentro de nós, assim conseguir libertar de dentro de nossa alma nosso complexo de inferioridade como povo, romper as amarras da escravidão a uma cultura artificial e alheia.
Pintar nossa aldeia é libertá-la, eivá-la das dores e sofrimentos advindos da dominação que ela sofre, arquitetá-la como construção autêntica e nativamente bela. Só assim, ao recuperarmos a melodia do nosso canto único e próprio, conquistaremos nosso espaço no concerto universal.

Balbúrdia das letras: Rio Carnaval 2030

Balbúrdia das letras: Rio Carnaval 2030: "Rio Carnaval 2030 A Escola se prepara para entrar na Avenida, tudo está pronto. A comissão de frente robotizada, comandada à distância ..."

Rio Carnaval 2030


Rio Carnaval 2030

A Escola se prepara para entrar na Avenida, tudo está pronto.
A comissão de frente robotizada, comandada à distância por uma mesa eletrônica emite raios laser que provocam êxtase na plateia de turistas. Os estado-unidenses agora sabem que efetivamente o carnaval é muito mais grandioso que os desfiles de dias de graça.
Nenhuma comissão de frente conta mais com humanos.
Primeiro tiraram as velhas guardas e os passistas da frente das escolas, a última reminiscência desta prática medieval foram os velhinhos em azul e branco da Portela tirando a menor nota entre as comissões de frente. Daí a comissão de frente evoluiu para dançarinos, patinadores, acrobatas, até que uma Escola Grandiosa importou robôs... Isto fazia apenas cinco anos... Ninguém mais queria ver seres humanos na comissão de frente. Robôs eram perfeitos em suas evoluções pirotécnicas eletrônicas, salvo um ou outro problema mecânico responsável por alguns rebaixamentos.
Depois alas branquíssimas e superensaiadas. As academias de dança de salão agora se especializaram em “new samba dance”, algo que de longe lembrava o samba antigo, bem de longe...
Passos marcados de acordo com o enredo. Uma espécie de retardamento mental coletivo onde as pessoas nas alas se idiotizavam imitando as personagens do enredo... De Chica da Silva ao bicho preguiça, havia “coreografia” para tudo...
Algumas bastante complexas, como as que imitavam as saturnais gregas com as hetairas em complicadas funções sexuais.
Os puxadores, não, cantores do New Samba Dance, verdadeiros marajás, eram contratados a peso de ouro. Cantores o resto do ano, sequer frequentavam as quadras das escolas (que na verdade, agora, só serviam mesmo para comemorar as vitórias, já que os ensaios eram feitos nas academias do NEW SAMBA DANCE). Faziam contratos de superestrelas e desfilavam sua elegância brega na revista Caras.
A bateria foi extinta. Atrapalhava a corrida, quero dizer, desfile das escolas de samba. Uma mesa eletrônica sintetizada acompanhava o puxador – quero dizer cantor, que com uns gritinhos do tipo “vamuláminhagente querida”, tentava animar aqueles que puderam pagar cerca de 5 mil dólares para entrar em uma das alas.
Na verdade, neste imenso teatro, nem mais era obrigatório tocar samba, e algumas escolas “inovavam” tocando Hip Hop, Funk, Axé, Rock.
Os Carros alegóricos, enormes, gigantescos, envolviam uma operação logística de guerra para serem montados e ocupavam quase todo o espaço das escolas de samba.
Havia mais gente em cima dos carros que embaixo deles, e na verdade, os turistas (que eram os únicos que tinham condições de pagar para ver o desfile), nem notavam muito quem ainda cismava em fazer as coreografias no chão. Preferiam as coreografias ensaiadas em cima dos carros, onde pululavam as estrelas de cinema, televisão e as supermodelos.
Tirando a Marques de Sapucaí, pouco dava para notar na cidade que era carnaval.
Esvaziado de sentido, ele agonizava, órfão do samba e da marchinha.