quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O racismo nosso de cada dia

O racismo nosso de cada dia.

Onde você guarda teu racismo? O Brasil é um país racista, muito racista, de um racismo estrutural, excludente e genocida. Desde a abolição da escravatura, se perpetuou o credo do "brasileiro cordial" e da "democracia racial". Ali Kamel não inventou nada, ele só repete a mentira das elites e uma mentira dita mil vezes vira uma verdade. Afinal, não tivemos Klu Klux Klan, nem negros queimados na cruz, não precisamos fazer uma luta pelas liberdades civis, ou algum movimento Black is Beautiful. No Brasil todos são tratados com respeito. Mentira, mentira, mentira, mil vezes mentira.
Os negros são 60% da população de baixa renda (e talvez mais, por conta do embranquecimento dos questionários), mas apenas 30% da classe média e 17% da classe alta. Ou seja, no Brasil, a classe dominante se declara 83% branca. Com as distorções derivadas dos questionários, isto implica em um sentimento de classe dominante, que é racista e vê com ojeriza e raiva a ascensão social de negros. Basta olhar a raiva do bolsa família, se há uma preconceito social disseminado e feroz contra a ascensão social de qualquer pobre (esta a verdadeira raiva que a elite tem do bolsa família), quando se é negro, a dificuldade é dobrada, aí o preconceito é duplo. Por isto as cotas raciais nas universidades geram tanta raiva. 
O Brasil não pagou o passivo da escravidão, a República não pagou e nossa nação tem esta dívida para com os negros. Ora, se é justo (e é justo) pagar indenização para quem foi perseguido, preso, exilado, ou pagar indenização a quem foi morto pela ditadura, o que dizer aos familiares descendentes de escravos que tiveram seus avós arrancados á força de suas casas, submetidos a um trabalho brutal, suas mulheres estupradas e usadas como mucamas? Tudo foi "apagado" pela abolição. Não, não foi apagado, os descendentes dos que foram raptados na África, foram submetidos á mais crassa miséria nos guetos e favelas do Brasil. A escravidão não foi abolida, ela foi extinta por ser economicamente inviável. "Livre do açoite da Senzala, preso na miséria da favela", cantava a Mangueira (quilombo urbano) no centenário da Abolição (samba de Hélio Turco, Jurandir e Alvinho).
As cotas servem para acender o debate do racismo, para mostrar que os negros são maioria na favela, na prisão, mas minoria na universidade. Não espanta que uma jornalista dissesse que "esta médica cubana parece com minha empregada doméstica", tirando o racismo da declaração, parece mesmo. Os negros são empregados domésticos não só nas novelas da Globo, que propaga e dissemina o racismo com seu padrão de beleza nórdico, médico negro no Brasil é minoria. Me emocionei e fui quase às lágrimas conversando com médicos negros cubanos, quatro médicos, todos negros, que explicaram, que mesmo em Cuba, era assim. Antes da Revolução, negro era engraxate, motorista, porteiro, agora é médico, cientista, general.
O racismo brasileiro é pérfido, é mudo e "cordial", desde que o negro saiba seu lugar na sociedade, desde que não queira revirar a sociedade de ponta-cabeça. Desde que não queira ocupar lugar de branco, de sinhozinho, o Brasil ainda é a sociedade da Casagrande e da Senzala, lugar de sinhozinho é no Algo Gâvea, na universidade pública, nos cursos de ponta, ou na PUC e nos melhores empregos. Negro? Ora, com o lugar que sempre teve, e agradeça ao fato de o Brasil ser uma democracia racial e não haver racismo, afinal, vivendo com os piores salários, em empregos informais ou ganhando salário mínimo, morando nas favelas, ainda assim não são espancados pela elite branca.
Já dizia Candeia, "E cante o samba na universidade, aí sim tu verás que teu filho será livre de verdade", o grande poeta sabia que ou o negro fazia sua emancipação ou continuaria escravo da elite branca.
Não são? E quem é revistado pela polícia? Quem é expulso pelas remoções? Quem é morto no grande genocídio que se faz ano a ano no Brasil?
Efetivamente, este artigo não serve só para isto, se fosse só para isto, cairia num lugar-comum, afinal, tudo que eu disse acima, muita gente já disse. Mas digo mais, somos racistas e perpetuamos o racismo. A esquerda brasileira que se diz "progressista" e contra homofobia, racismo, machismo, etc, é a mesma esquerda que nas cátedras da universidade exclui trabalhadores dos cursos das universidades públicos em nome da "excelência acadêmica"? Ora, cerca de 20% dos universitários trabalham, ou seja, 80% não trabalham (ou melhor, não precisam trabalhar), isto mantém e perpetua o racismo e o machismo estrutural. Universidade branca, de classe média para homens e mulheres que não precisam trabalhar. A sanha de nossa "esquerda revolucionária" contra os cursos de período único, manhã ou noite, ou contra pós graduandos que trabalham atingem no coração e excluem exatamente quem mais precisa. 40% dos lares são mononucleares comandados por mulheres, estas mulheres que tem que cuidar de seus filhos (e dentre as que não tem com quem deixar seus filhos, a maioria é negra e pobre), os trabalhadores que não podem parar de trabalhar (maioria de negros também), em nome do preconceito revestido de "excelência" acadêmica também, são excluídos das universidades. Mas a esquerda que comanda estes cursos e estas cátedras, assim como ali Kamel, não vê nenhum racismo nisto! São brancos falando, pregando e estudando o racismo e evitando que os negros entrem na universidade.
E isto é um exemplo só de como entre o discurso e a prática medeia uma grande distância. Há um certo "pragmatismo revolucionário" de algumas correntes que acreditam que o problema do racismo é o capitalismo. Outra mentira! A Rússia e Cuba fizeram a revolução, poucos lugares no mundo há tanta homofobia quanto na Rússia, em Cuba a homofobia só começou a ser debatida e combatida faz pouco tempo, e o machismo do cubano e continentalmente famoso. Estas pautas transversais não se resolvem por si só. O Racismo é bem combatido em Cuba, tanto na estrutura, quanto no discurso, mas teve e tem que ser combatido, ele não é simplesmente uma pauta que se resolverá por si só no socialismo!
Dizer isto é jogar a sujeira para debaixo do tapete. Na nossa ideologia dominante, o negro não tem religião, tem seita, não tem cultura, tem folclore. Tudo que seja referente ao negro é de uma beleza "exótica", "folclórico", ou "culto de tradição". O que é uma bobagem imensa e forma de uma manutenção de racismo disfarçado de concessões à cultura negra.
A mitologia afro brasileira é tão rica quanto a greco-romana,  sua religião é uma RELIGIÃO, não uma seita, que não aceita ser demonizada ou vista como menor ou inferior. E este debate tem de ser feito agora, desde este primeiro momento, e não jogado para uma messiânica revolução futura.
Poucos sabem que foram os negros e os índios que ensinaram higiene ao branco, que baseado em preconceitos religiosos instituídos por um preconceito do corpo católico, simplesmente não tomavam banho. O banho diário e o cuidado do corpo, sem preconceito de nudez e sem culpa sexual eram elementos da cultura negra e indígena, sinais inequívocos de avanço contra o preconceito medieval.
Para terminar, organizando um debate, um seminário nacional de racismo numa Federação do Judiciário que já tem 25 anos, há dois dias do debate da questão negra, temos 12 pessoas inscritas, numa Federação que tem 26 Estados. Na pesquisa que fizemos na base do Rio de Janeiro, só 5% responderam que eram "negros". É claro que os negros no Judiciário são minoria, mas os índices das respostas estão abaixo de qualquer questionário racial, inclusive feito na classe dominante. Isto demonstra inequivocamente o nosso RACISMO. Temos os "crespinhos", os "marrons", os "queimadinhos", os "moreninhos" e uma dezena de designações chulas que disfarçaram a negritude desde que o o Dono de Engenho estuprou as mucamas e gerou filhos bastardos, que para todos os fins seriam "não negros". Os índices mínimos de negros no Judiciário, 5%, mostram um embranquecimento forçado das Consciências e diminuta participação no seminário (levando-se em conta que qualquer debate jurídico junta todos os 26 estados da Fenajufe) mostrando claramente que conservamos à Ali Kammel, o racismo nosso de cada dia.
Ao se falar da questão do racismo, se fala entredentes, com racismo e mofa, diretores do sindicato já disseram na minha cara que "levei a macumba ao sindicato" ao convidar o Jongo da Serrinha para fazer espetáculos, aliás, numa direção de 24 diretores, apenas um se inscreveu no debate do racismo, o que mostra mesmo que inclusive no meu sindicato o racismo é uma questão menor. Mas não é só no meu sindicato, no meu e em todos os outros!
Outro enviou brancos que estavam em outro evento para "prestigiar o seminário", prestigiar de verdade seria convocar os negros do sindicato deste Estado para debater o racismo no seminário; outro um sindicato da base da Fenajufe, no dia da semana negra, chamou um debate com acadêmicos brancos, e não mandou seus negros que desejavam debater o que sofrem com o racismo no debate que lhes interessava. Casagrande mesmo, tutelando a Senzala e dizendo inclusive para ela, como se deve debater o racismo.
11 inscritos num seminário nacional de racismo mostra que guardamos a sete chaves e com segredo nosso, o racismo nosso de cada dia.

--
Atenciosamente,
Roberto Ponciano - Mestre em filosofia com especialidade na área de ética com a dissertação Para uma ética do Devir em Marx.