quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A Feiticeira


A Feiticeira

Ela chegou num dia de tempestade. Enquanto as pessoas se trancavam em casa, encanadas num medo secular, trovões sacudiam as casas, de maneira que o rio passeava por entre as ruas e todos eram só pavor. Quando ela entrou na cidade, com seu vestido curto colado no corpo, deixava ver, na transparência encharcada o negror do bico dos seios e até o triângulo fogoso. Vinha calmamente caminhando pelo meio da rua, como se saísse da borrasca.
Como uma Iemanjá de ventos ela tocou a procela e o estio se fez, o sol apareceu, radiante, sacudindo um arco-íris no meio dos cabelos negros dela.
Nunca mais a cidade teve paz, dividida ao meio: os homens a amavam, a desejavam, queriam a carne dela; as mulheres a odiavam, se rasgavam com despeito.
Ela foi morar numa pequena casa alugada no centro do vilarejo. Vivia de vender divindades, colares e miçangas que fazia, ora de cristais que lhe acorriam quando caminhava nas matas em derredor, ora de conchas de não se sabe que mar, se em profundezas do interior ela tinha se afundado.
O padre a condenara. Jamais se confessara. O feitor dos pecados estava com o ouvido cheio de tantas mentiras. Nas confissões, homens que nunca a tocaram (e até algumas mulheres) mentiam, ou enlouqueciam, confundiam a realidade com o desejo atormentado e forte que sentiam, e teciam para o padre urdiduras de volúpias loucas, de três mil penetrações em mil buracos diferentes e línguas e braços.
Nunca ninguém, em verdade, na cidade a possuíra, embora quase todos a quisessem.
O coronel Torquemada tentou. Primeiro se fez de capitalista, propôs casamento, estava disposto a separar-se da esposa, ofereceu jóias (sempre recusadas). Suando por todas as suas banhas, mil vezes entrara, duas mil vezes saíra da casa da feiticeira, sempre enjeitado ao tentar seduzi-la. Ele não podia admitir, afinal, quando queria uma mulher era só apontar um dedo, e se fosse uma camponesa então, só derrubá-la e montá-la como um burro, ou outro animal. Este animal jurássico, por fim, se cansou de pedir o que, por direito seria dele. Iria numa noite à casa de Bela (este era o nome dela, sempre que lhe perguntavam, ela apenas dizia Bela, Bela de nada...) e tomaria à força, com ajuda dos seus capangas, do corpo dela, como melhor lhe aprouvesse. Propósitos adivinhados por ela em seus tarôs. No dia que ele marcara para a desforra, adormeceu durante o dia com uma preguiça incomum e foi morto, com água quente no ouvido, pela beata mulher, que enlouqueceu e até hoje corre pelos caminhos deste mundo, como se perseguida pelo demo em pessoa.
Depois tentou um playboy, comedor de meninas incautas, o gostosão da cidade. Todas as mulheres suspiravam por ele, por que ela não suspiraria? Perfumou-se, engravatou-se, poliu o carro, não se fez de rogado. Tentou de tudo e se apaixonou. E ficou bobo de amor, imprestável para as outras, sem nunca ter tocado em bela. De tanta tristeza morreu tuberculoso e todos na cidade vêem sua alma entristecida, vagueando pelas noites com um único nome na boca: Bela.
Um seminarista largou a batina, que já estava se incendiando em contato com o pênis, que ficou empedrecido de tanto desejo ao sentir o cheiro dela. Para não enlouquecer foi embora da cidade. Parou no primeiro bordel, comeu a cafetina, que se apaixonou, mas ficou ele tomado de um tesão tão grande que, quando não está dormindo, está fodendo, e, para isto ela teve que permitir que ele trepasse com todas as putas do bordel. Virou uma sensação na cidade e tem mulher que vem de longe para ver e experimentar, pois não há no mundo tesão igual. Entretanto, ele está sempre com um olhar tristonho e enjeitado, pois o cheiro de mar de Bela nunca lhe saiu das narinas.
Outros enlouqueceram na cidade, casais se separaram, velhos se suicidaram, planos mil para conquistá-la. Estuprá-la, também pensaram, mas era impossível, pois seus santos sempre lhe iluminavam o caminho e ela, com um feitiço, matava ou enlouquecia o infeliz.
Temida e poderosa, solitária, de peito fechado para o amor, encantada no seu espelho, fazia sexo consigo mesmo, rolando pela cama durante as noites, um espelho frente a outro, como se amasse infinitas Belas...
Um dia, depois de cinco anos, volta à cidade um simples rapaz que fora, a muito custo, estudar na capital. Voltou doutor, graças às economias da mãe e de seu próprio esforço sobre-humano em trabalhar em tudo que pudesse.
Logo que chegou foi avisado que jamais olhasse nos olhos de Bela, pois estaria enfeitiçado para sempre. Mas a desobediência era seu destino e este lhe sorriu quando um dia, ao ir pescar, encontrou com ela encantando peixes e colhendo-os no rio.
Ela o olhou, mas ele não se alterou. Continuou com seu olhar sombrio e tristonho, de quem não tem nada mais na vida que sua própria consciência e esta bem mais vale que ouro. E pensou consigo mesmo: Esta é a bruxa? Que mulher comum! E este pensamento surdo atordoou Bela que o adivinhara pela indiferença. Ele passou por ela, como se ela fosse mais uma das pedras do caminho, e, pela primeira vez, depois dos séculos que ela vivera, ela se perturbou com um homem.
Naquela noite não conseguiu fazer amor com os espelhos. Seus dedos não lhe davam prazer, senão dor. Seu sexo estava teso e ela se sentia rígida e irritada. Fez então um feitiço e atirou contra ele. Inútil, era um menino tão distraído, que o feitiço não deu conta dele, e foi acertar o vigário, que louco de amor, largou batina e ficou uma semana cantando serenatas, dia e noite à porta de Bela, escandalizando a cidade, até que ela entendesse o mal-feito e desfizesse o bruxedo.
Então ela se perfumou de mar e jasmim, colocou seu vestido mais simples e belo, alinhou os cabelos e foi à praça, onde sabia, o encontraria. Lá chegou, e ele distraído, como sempre. Tão ausente ele estava que ela teve que se sentar ao lado dele no banco para que ele a notasse. O cheiro dela entrava por seu nariz e ele não se perturbava. Não sabia como aquele homem podia não querer tocá-la. Pensou, talvez ele fosse gay e ia quase se levantando, quando ele falou um oi.
Ela se zangou. Como? Só oi! Pensava ela. Era impossível alguém imune a feitiços. Então ela fez uma coisa que seus quatro séculos de vida jamais pensaram em fazer, suas muitas cidades e andanças, tomou da boca deste doce menino e beijou, para que o encantasse. A cabeça de Bela viu espelhos se quebrarem no mesmo instante e os dois foram arrebatados por um tufão junto com a praça inteira. Ninguém mais na cidade teve notícias dos dois desaparecidos.
Na verdade ele era o prometido dela, coisa que o tarô, que tudo a ela avisara, disto jamais dissera, pois o amor é sempre um ladrão sem vergonha e imprevisível. Ao se tocarem, todos os segredos foram contados, seus corpos se consumiram em fogo e seus espíritos transformaram-se me estrelas loucas insones, posto que orbitam fazendo amor, em milhões de gozos escarlate por toda eternidade.

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