quinta-feira, 11 de abril de 2013

60 anos da vitória sobre o nazi-fascismo


60 Anos da Vitória Sobre o Eixo Nazi-fascista – Stalingrado, o Verdadeiro dia D

Saber que resistes.
Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos resistes.
Que quando abrimos o jornal pela manhã teu nome (em ouro oculto) estará firme no alto da página.
Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas valeu a pena.
Saber que vigias, Stalingrado, sobre nossas cabeças, nossas prevenções e nossos confusos pensamentos distantes dá um enorme alento à alma desesperada e ao coração que duvida.”
Carlos Drummond de Andrade in Carta a Stalingrado
Este ano a humanidade celebra os 40 anos da vitória sobre o Eixo Nazi-fascista, numa guerra que gerou o genocídio de 50 milhões de vidas. Faz pouco tempo, vimos a comemoração da Invasão da Normandia, uma batalha que passou a ser designada como o “Dia D” da Segunda Grande Guerra e denominada de forma mentirosa pelos historiadores ocidentais como a mais importante batalha da luta contra os nazi-fascistas. Como uma mentira dita mil vezes acaba por virar uma verdade, vamos relatar e recobrar historicidade da resistência soviética ao nazismo e mostrar a batalha de Stalingrado, o verdadeiro dia D e a maior batalha da Segunda Grande Guerra Mundial.
Antes de tudo é interessante mostrar que o regime nazista de Hitler nada tinha em comum com o Socialismo Soviético. Por mais que tenha havido terríveis erros na condução do Socialismo Russo, ele era o grande inimigo a ser batido, o país dos sovietes que tinha de ser banido do mapa, o inimigo principal da Alemanha Hitleriana. Desde a ascensão de Hitler ao poder que a União Soviética denunciava aos aliados (França, Inglaterra e Alemanha) o rearmamento alemão e os planos imperialistas expansionistas germânicos. Os aliados não só fingiam não ver a escalada guerreirista alemã, como exultavam com a possibilidade de uma guerra alemã à União Soviética.
Durante a Guerra Civil Espanhola, enquanto a Luftware alemã pode impunemente rasgar os céus franceses para bombardear os soldados e as cidades republicanas, o governo francês proibiu que o Exército Vermelho passasse pela França para combater do lado dos republicanos e dificultou sobremaneira o envio de armas pela União Soviética aos resistentes da República assassinada. O resultado histórico disto todos já sabem, mas há um outro, a Alemanha nazista pode treinar táticas de guerra aérea impunemente com as bênçãos de todas as potências “liberais e democráticas”.
Diante da imobilidade e da simpatia do Ocidente frente à Alemanha Nazista nasce o pacto de não agressão Germano-soviético. O pacto jamais foi um pacto de cooperação militar. A diplomacia dos dois países jactava-se de ter tido uma vitória política sobre o outro. Pelo lado alemão, Hitler achava que com o pacto poderia operar mais livremente a guerra contra o resto da Europa, pelo lado Soviético, Stálin acreditava que entrar em guerra contra a Alemanha naquele momento seria suicídio, e que era necessário um esforço concentrado de guerra para fazer frente ao inimigo. Ambos queriam ganhar tempo para um confronto que viria mais tarde. A história provaria quem estava correto. Na URSS o dia de trabalho que já era de 8 horas por dia em 1927 (é bom lembrar que, no Brasil, esta conquista data de 1988) foi estendido para 12 horas e indústrias inteiras foram mudadas para equipamentos bélicos para o esforço de guerra.
Houve um grande erro estratégico diante do pacto. Stálin considerou que a Alemanha Nazista só teria condições de invadir a URSS em 1943 e se descuidou de sua defesa na linha de frente (embora os soviéticos nunca tenham alimentado nenhuma ilusão de que não haveria luta contra o nazismo). Assim, quando a Alemanha invadiu a União Soviética em julho de 1941, em que pese todo o esforço industrial de guerra, parecia efetivamente que em meses a União Soviética deixaria de existir. De um total de 7.500 aviões, os soviéticos perderam 4 mil só na primeira semana. Considera-se que a URSS perdeu 80% da aviação e mais de 50% dos tanques nos dois primeiros meses do ataque alemão.
Até outubro os nazistas já haviam cercado Leningrado e estavam às portas de Moscou. Até novembro o saldo de destruição era inimaginável de um país poder resistir a ele: 670 mil soldados soviéticos capturados, destruídos 3.200 tanques, 15.500 aeronaves (lembrem que a URSS só tinha 7.500 no início da guerra, ou seja, haviam sido dizimadas duas vezes a força aérea russa), 57.600 veículos, 1.200 peças de artilharia e 1.200 locomotivas.
O Mito do General Inverno
Há um mito ocidental de que os russos só conseguiram derrotar os alemães por conta do “General Inverno”. É verdade que a chegada do pesado inverno atrasou a guerra alemã, mas os alemães não foram parados só pela neve, e não foram derrotados por ela. Foram derrotados inclusive no campo da tecnologia e da produção, pela capacidade da URSS de se reorganizar em meio ao cataclisma e produzir aeronaves e tanques em tempo recorde, numa velocidade inimaginável. Campos inteiros eram queimados e indústrias eram desmontadas em dias e remontadas na retaguarda. O soldado soviético, vendo que o inimigo alemão assassinava impiedosamente até os civis passou a combater até a morte. Na retaguarda alemã, uma incrível guerrilha começa a minar a força e o ânimo dos combatentes germânicos.
O frio fez estragos grandiosos no lado soviético. Sitiados em Leningrado, 1 milhão de pessoas morreram de fome e frio. Só que o exército soviético estava TECNOLOGICAMENTE MELHOR PREPARADO PARA O FRIO. Desde as vestimentas, até o tanque e o óleo. Enquanto o óleo dos aeromotores alemães congelava nos tanques e não os deixava decolar, a força aérea soviética, na mesma velocidade que perdia aviões, os fabricava, e conduzia missões consideradas impossíveis em pleno inverno.
Dos sucessos iniciais de 1941 e 1942, a Luftware alemã começou a ser batida no ar pela aviação russa em 1943, em maior número e, agora, desenvolvendo em plena guerra aviões tal ou mais velozes que os alemães, capazes de abater os antes inexpugnáveis inimigos aéreos.
No chão, as tropas panzers perderam sua superioridade. Se no início da guerra os panzers enfrentam os obsoletos B50 soviéticos, estes sendo destruídos na proporção de 2 por 1, agora enfrentavam os terríveis T34. Mais velozes, melhores blindados, melhor manobráveis no terreno difícil, com um alcance de tiro maior. Pela primeira vez durante a guerra os nazistas enfrentam um inimigo que tinha superioridade na batalha dos tanques. Isto afeta de maneira o ânimo alemão. Divisões inteiras são destruídas em batalhas de tanques descomunais onde os T34 precedem ao avanço das tropas russas.
Stalingrado também estava cercada desde julho de 1942. Um monte de ruínas com soldados soviéticos escondidos praticamente nos entulhos e nos subterrâneos da cidade, era a última cidadela contra o avanço do Exército Alemão rumo ao Petróleo e ao trigo dos campos soviéticos. 70% de toda a força militar do Eixo encontrava-se na URSS neste momento (incluindo suas tropas mais capazes). Hitler queria capturar Stalingrado e seguir rumo a leste, para se juntar aos japoneses que estavam prontos para invadir a Índia e rumo ao Sul para juntar as tropas de Rommel que combatia no oriente.
Numa resistência tenaz, a cidade resiste 200 dias, cercada, com fome, muitas vezes com dificuldades de se abastecer de munições. Três exércitos alemães, dois romenos, um húngaro e um italiano cercam Stalingrado. A situação parecia pender para a Alemanha, mas, devido à grande resistência militar, ao grande esforço do povo soviético durante a guerra para suprir o exército vermelho e a superioridade tecnológica e bélica conseguida devido a isto, a cidade não só resiste, na batalha mais sangrenta da história, mas, incrivelmente, os soviéticos contra-atacam e aí começa o fim do nazi-fascismo.
Os exércitos soviéticos conseguem com a ajuda da força aérea e dos T34 flanquear os exércitos romenos e cercam aproximadamente 300 mil soldados alemães em novembro de 1942. Os alemães ainda resistem dois meses, mas em 16/1/1943 o general Paulus entrega-se com o remanescente do seu exército. Na batalha de Stalingrado os soldados do Eixo haviam perdido cerca de 800 mil homens, o Exército Vermelho havia perdido 1 milhão e 100 mil (o exército estado-unidense, durante toda a guerra perdeu 300 mil).
Depois da derrota de Stalingrado a máquina bélica alemã foi completamente desbaratada, os soviéticos bateram as tropas alemãs até Berlim. Os aliados não invadiram a Normandia senão depois da vitória soviética em Stalingrado (embora Stálin clamasse por esta invasão fazia tempo) e a celeridade na invasão da Normandia se deveu principalmente ao medo de que URSS tomasse toda a Alemanha sozinha, já que efetivamente a Alemanha já estava militarmente irremediavelmente derrotada. Fica claro então que o verdadeiro dia D da Segunda Guerra foi a batalha de Stalingrado, que mesmo que não houvesse a invasão da Normandia os nazistas teriam sido vencidos sozinhos pelo Exército Vermelho que já havia derrotado o grosso das tropas alemães e as estava levando de volta para o Reichstag.
Embaixo, o relato de uma carta de um soldado soviético na luta sem rendição contra os nazi-fascistas:
Aqui está a carta de Alexandr Golikov, escrita em tanque alvejado por projétil inimigo. ‘Neste instante, estamos em combate cruel, de vida ou morte. O nosso tanque foi danificado. Por todos os lados vejo soldados nazi-fascistas. O dia todos estamos rechaçando o ataque. A rua está cheia de corpos em uniformes verdes. Ficamos com vida Pavel Abramov e eu. No tanque furado igual peneira e todo escangalhado. Não temos uma gota de água sequer. O tanque estremece com os golpes do inimigo, mas, por enquanto estamos com vida. Já não temos projéteis. A munição está se esgotando. Pavel atira contra os inimigos com tiro certeiro, eu estou “conversando” com você, como sempre. A sua fotografia está em meus joelhos. Eu sei que é a última vez... Através das brechas no tanque eu vejo as árvores verdejantes, flores no jardim – de cores vivas, vivas. Vocês que sobreviveram à guerra, terão após a guerra uma vida tão linda, como essas flores e serão felizes. Por uma vida assim não temo a morte’. Carta milagrosamente encontrada num tanque onde estavam dois soviéticos mortos: após a morte do primeiro combatente, o segundo tomou seu lugar atirando. Quando a munição acabou ele tocou fogo no tanque.”
Mais de 20 milhões de soviéticos morreram na luta contra o nazi-fascismo.

Espumas do mar



Espumas do mar


Espumas do meu mar,
Bóiam marinas saltimbancas
De barcos que semipartem sempre para lugar nenhum
Ou para dentro desta água infinita
Que ridiculariza e eterniza a morte
Em pequenas vidas continuas e ininterruptas
Que nadam em silêncios insuportáveis
E cheiros hipnotizadores
Que me levam à areia.


Pé, areia, pé, sal, água,
Areia, tatuí, areia, água,
Pé, frio, pé, tornozelo, água,
Pegadas de dois pés apenas
Caminho sobre a areia,
Caminho sobre o mar,
Afogado em almas imorredouras
Em silêncios nascedouros de vernizes,
Aquarelas de flauta doce


Em sóis vermelhos espargidos
Em brumas que são quadros
De homens que se pintaram em maresia,
E sumiram dentro de agonias,
De ondas que eternamente quebram
Rindo do instante pequeno
Em que contemplamos
Fictos, olhos, perdidos pensamentos
Lástimas, pele salpicada de barulhos
Deste mar entrecortado,
De Botafogos e Cáspios
De Angras azuis perdidas
Em águas calmas que me levam ao fundo
E que me suicidam continuamente em afogamentos
E sangrias desatadas
Em barcas perdidas rumo ao inferno,
Ao pensamento, ao desalento.


Mar, dominador insaciável de meu sono
Desejo ininterrupto,
Instinto imaculado.


Mar, bravio e calmo como cópula.


Mar, nascentes desesperadas a te procurar,
E desaguar como fêmeas no cio,
Amazonas consumido em tua virilidade
Pororocas de sêmen vicinais
Nascimentos de mortes repetidas.


Mar.


Em ti todo silêncio é múltiplo.
É toda música é uma oração.
Todos os deuses são teus
E todos os homens joguetes de tuas marés.
Essência escondida de nossos úberes
Incontida permanência da natureza.

A embriaguez ética da direita e da extrema esquerda


A embriaguez ética da direita e da extrema esquerda

Não se entende a classe média, a mídia, a direita e seu discurso "moral" e "ético" sem entender o nosso tempo. André Comte Sponvile, filósofo francês chama a atenção para a mudança de paradigma nesta geração. Se antes havia o primado da política; e a moral e a ética ficavam em segundo plano, hoje, neste bloco histórico (conceito gramsciano da relação entra as estruturas [econômicas e políticas] e superestruturas [pensamento]) hodierno, contemporâneo, fica claro a prevalência do discurso “ético”, “moral”, em detrimento da política.

1968 – O ano que não terminou

Para entendermos este primado da “ética”, temos que primeiro entender a geração imediatamente anterior a nossa, a da década de 60 e seus ideais, cujos representantes, em sua maioria estão vivos, mas cujos ideias estão fora de voga. A década de 60 foi a década das grandes revoluções do pós-guerra: Maio de 68 Francês, Woodstook, Revolução Cubana. Parecia que o mundo caminhava para uma outra sociedade, e o discurso era ou “imoral” ou “amoral”. A fenomenologia, o estruturalismo colocavam a verdade no discurso e a moral não passava de um preconceito pequeno-burguês, o casal da moda, Sartre, Simone de Beauvoir, com seu casamento aberto, parecido com o livro “As ligações perigosas”, era a antítese total à família, ao casamento pequeno-burguês, à moral monogâmica. Atacar a moral burguesa ou pequeno-burguesa seria optar por um imoralismo ou por um amoralismo, trocar a moral de nossos pais por moral nenhuma. A sociedade parecia que seria solapada em seus alicerces, a monogamia, o casamento foram desvalorizados. Foi a época da pílula, do divórcio, da libertação sexual das mulheres, da queima dos sutiãs em praça pública. Woodstook e a ideologia hippie revivescendo a filosofia de Wilhelm Reich pregavam o amor de todos para todos e o sexo livre. A Revolução Mundial parecia próxima e os jovens queriam organizar sovietes ou sociedades hippies em todos os países. O experimentalismo, seja no sexo, na política, nas drogas era a palavra de ordem.
Mas, como todo movimento, dialético em sua estrutura, fica a marca da permanência em tudo que é revolucionado. O Maio Parisiense parecia ter ruído junto com o Muro de Berlim. A revolução sexual é irreversível mas seus excessos foram limitados pela epidemia de AIDS e valores antigos como a monogamia e o casamento foram retomados, fora uma forte reação conservadora em boa parte do mundo, valorizando todos os ritos monogâmicos, o experimentalismo sexual da juventude, se não foi limitado, deixou de ser uma ideologia. Para a juventude, militar ou pertencer a um partido passou a ser algo de somenos importância, ou melhor, fora de moda. No Brasil e quase toda a América Latina, a Longa Noite, a Ditadura Militar, juntou a desesperança dos ideais socialistas ao medo e a geração crescida nas décadas de 80 cantava que era a Geração Coca-Cola, que eram inúteis e que não sabiam escolher presidente. Que não tinha (como dito na voz de um dos grandes poetas da Geração 80, Cazuza) Ideologia para viver, já que as ilusões estavam todas perdidas.

A Década Neo-Liberal

A derrota do chamado Bloco Socialista e de todo o movimento social internacional na década de 90 foi tão profunda, que mudou paradigmas. A década de 90 foi a década de ascensão dos Yuppies e da ideologia neo-liberal. Fogosamente, diante da derrocada do Socialismo Real o mundo foi tomado por uma epidemia de valorização do indivíduo, não no sentido humanista, mas no pior dos sentidos, no sentido egóico da satisfação dos desejos de consumo alido a um id paranóico e a lei da selva do todos contra todos. Na década de 90, ideologicamente, o mundo é vendido como uma selva, com a lei do mais forte prevalecendo. O desemprego brutal, em massa, coloca os sindicatos todos na defensiva e lutando só contra a perda do emprego, quando não vendidos à lógica do capitalismo e apoiando o neo-liberalismo. As privatizações fazem a apologia do lucro e a juventude, em sua grande maioria, passa a ter ojeriza em se organizar em partidos e sindicatos. Começa a se construir um discurso pseudo ético, no qual o ser humano é rebaixado a consumidor e se inaugura uma “ética empresarial”.
Como relata Comte Sponvile, não existe ética empresarial, a empresa não tem ética, ela quer é lucro, maximizar oportunidades e extrair o máximo de mais valia. A chamada “ética” empresarial, da qual o mundo está farto, não passa, no fundo, de uma imagem de confiabilidade da empresa para o consumidor da qual ele depende e, com isto, conseguir a fidelização do cliente e o máximo do lucro durante o maior período de tempo possível. O zênite desta “ética” pululou nos livros de autoajuda que louvam o “empreendedorismo” e o individualismo mais grosseiro e selvagem, transformando o “homem no lobo do próprio homem” e nada mais. A ética do vencedor, que justifica a pobreza na “competência do mais forte” e na “pobreza espiritual” dos menos capazes. A mídia vende a ilusão do “desemprego estrutural”, informando, no meio da crise, recessão e postos de trabalho que “empregos existem”, os trabalhadores é que não tem competência e formação para ascender a eles, como se formação no capitalismo não fosse uma questão de investimento, algo inacessível para quem está morrendo de fome.
Mesmo na filosofia séria, a desconfiança sobre as formas organizadas de política passa a dar a tônica, com as filosofias irracionalistas, que negam qualquer forma de organização (e mesmo de filosofia, como um retorno à frase hegeliana de que chegamos ao fim da história, assim também a filosofia chega a seu termo), ou quando não negam a existência de uma filosofia como sistema, negam, por sua vez, a participação organizada nos partidos e sindicatos.

A queda do muro de Wall Street e a retomada de foco
Esta é a herança que recebemos, nosso bloco histórico. A desconfiança total nas formas organizadas de participação coletiva (partidos e sindicatos) e a não-participação em suas instâncias. Um grosseiro individualismo e um discurso ético que não sai do individual para o coletivo e sua necessária implicação política, constatada como essencial desde Aristóteles e sua defesa do homem como animal essencialmente político. A queda da bolsa de Wall Street todavia, balança este primado do individual sobre o coletivo.
Fukuyama e os Chicago Boys, e todo seu ideário entraram em colapso, por conta disto, o “Fim da História” já não é mais uma tese hegemônica ou mesmo que seja defendida. O surgimento também de um bloco de países latino-americanos que conseguem recuperar suas economias na contramão daquilo que pregava o neo-liberalismo, através da solidariedade e da participação ativa dos povos, em contradição com os princípios individualistas e privatistas, cria uma alternativa a esta hegemonia político-cultural, abre passagem a criação de um novo bloco histórico, que visa estabelecer um novo processo sócio-metabólico.
Os sindicatos brasileiros todos, por exemplo, durante o Governo Lula conseguiram, de maneira organizada, aumentos acima da inflação. E, embora não tenhamos a participação política ainda nos níveis das décadas passadas, se vê uma tímida retomada da organização e da luta.

A embriaguez pseudo ética da direita

Toda a longa explicação anterior serve para tentar entender este fenômeno chamado de embriaguez pseudo ético da direita e porque ele consegue atrair pessoas que por vários motivos nunca quiseram participar da organização política e da luta seja em partidos, seja em sindicatos. Em primeiro lugar o discurso “ético” atrai.
A ética é usada neste momento como falácia de autoridade e destrói preliminarmente qualquer um que queira se antagonizar aos movimentos estilo cansei, ou moralismos de direita ou de extrema esquerda que se apresentam como opção para “limpar o Brasil”. Ora, pensemos no seguinte silogismo.
Premissa maior: Todo homem justo é ético e defende propostas éticas.
Premissa menor: Nosso movimento de limpeza do Brasil apresenta uma proposta ética.
Conclusão inevitável: Logo, eu como homem justo tenho que defender o movimento “x”, se não serei um canalha.
Preso neste silogismo, a discussão deixa de ser ad argumentum e passa a ser ad hominem. Todo aquele que se opõe aos movimentos messiânicos, estilo UDENISTAS ou é canalha ou é ignorante.
O problema está na premissa menor, que é um axioma que não foi provado.
São estes movimentos de limpeza do país éticos? Como se erigem os movimentos de “limpeza”, de “luta contra a corrupção” a uma espécie de a priori kantiano, eles não precisam de prova ou debate. Todos estes movimentos passam, de antemão a serem “éticos”, “justos”, e todos aqueles que se rebelam contra eles passam a automaticamente representar a corrupção e a bandalheira.
Há dois problemas aí. Como nenhum destes movimentos consegue realmente fazer um debate real da ética destituída da política (a ética só pode existir em sua plena acepção no mundo da pólis, ela só pode ser entendida dentro da torção política), como eles viram às costas para a política e não tem objetivos estruturais políticos definidos, todos descambam para movimentos puristas, messiânicos e que tendem ou à extrema esquerda, ou à extrema direita. E isto tem uma razão de ser. Da mesma maneira que a derrota do Bloco Socialista na década de 90 levou à derrocada da discussão política e à embriaguez ética, a Construção de um Bloco Anti-hegemônico no Continente Sul Americano e caminhando para a construção de um Bloco Anti-hegemônico no Continente Latino-americano, retirou da direita qualquer projeto sólido de oposição ao projeto de Centro-esquerda no Continente Latino-americano. Boa parte da extrema-esquerda, presos a esquemas políticos fracassados, embarca na mesma canoa furada para tentar uma sobrevida, já que não tem nenhum projeto concreto alternativo ao neo-liberalismo, ou a este novo Bloco de Centro-esquerda.
Em resumo, o debate “pseudo-ético” surge como UMA CONSTRUÇÃO DE DIREITA, uma falsa alternativa, para não discutir os problemas estruturais de cada país, mas para criar uma ilusão de alternativa, situando no mundo da pureza a política e transformando a disputa de projetos numa disputa de quem é mais puro e ou casto. Conte-Sponville coloca bem claramente que política é o espaço da disputa e do conflito, o discurso pseudo ético quer fazer da política o espaço da santidade, que Conte-Sponville, mesmo sendo ateu, relaciona ao espaço puramente religioso, naquela parte das religiões que não fazem a disputa na área da política, como na busca da elevação espiritual nos monastérios e ou na caridade.
Efetivamente, de outro lado, é fundamental frisar, que os adversários deste discurso falso ético não estão contra a ética na política nem são a-morais. Simplesmente sabem que por trás da falsa discussão ética se escondem movimentos ultra-reacionários ou aliados de extrema-esquerda que em lugar de tentarem discutir as estruturas que possibilitam a existência da corrupção e do desvio, apenas denunciam o galho sem querer podar a árvore. Querer “capitalismo ético” é a mesma coisa que desejar que os lobos passem a ser pastores de ovelhas. Discutir, por exemplo, corrupção em campanha eleitoral não é fazer parte de um espetáculo circense auto-denominado “mensalão” (a maior farsa Jurídico-político da história do Brasil, Caso Dreyfuss, Incêncio do Reichstag Brasileiro), mas discutir a necessidade imperiosa de se ter eleições limpas, através do financiamento público de campanha. No Brasil, com financiamento privado de campanha o grande problema não é o dinheiro não declarado, ou o chamado “caixa 2”, é uma falsa questão ética, já que o dinheiro declarado, este já é sujo em sua essência, já que o financiamento eleitoral privado é feito por bancos, latifúndios, empresas de saúde privada, empresas de seguro de previdência, empresas de ônibus. Desviar a discussão para o “caixa 2” e a farsa do mensalão é deixar intocada a estrutura eleitoral que elege 300 das 500 campanhas mais caras, todas pagas pelas grandes empresas privadas que comandam o Brasil. Desviar a discussão ética da discussão estrutural política de mudanças profundas no Brasil, que dependem fundamentalmente, por exemplo da reforma política, é fazer o jogo da direita mais conservadora, que efetivamente quer reduzir a ética a um jogo jurídico de “culpados” e “inocentes”, sem tocar na estrutura corrupta em si do sistema.

Os movimentos estilo “Cansei”, ou moralistas de extrema-esquerda de candidatos “puros” não são éticos por sua natureza

Estes movimentos messiânicos de extrema direita ou de extrema esquerda não são éticos por natureza. Isto acontece quando questões políticas, como a discussão da reforma eleitoral urgente, com financiamento público de campanha, ou Reforma do Judiciário, com a democratização do STF, são desviadas do seu curso natural, que é a livre discussão política. Estes movimentos pseudo éticos são apenas a reação da extrema direita e da extrema esquerda à perda de representatividade política dentro da sociedade brasileira e a falta de projetos factíveis para a sociedade. Livre do pré-conceito, da falácia de autoridade dos antagonistas ao novo Bloco Histórico que emerge na América Latina, é que só podem se posicionar como neo-bobos pseudo-éticos, na falta de qualquer projeto político, é necessário dizer que não há santos na política, nem de um lado, nem do outro. Isto não nos leva ao discurso contrário, ou que querem nos enfiar goela a dentro que “político é tudo igual”, ou que todos os políticos são desonestos, Corolário necessário dos movimentos puristas, messiânicos e pseudo-éticos, que acabam reduzidos à sacralização de figuras como Joaquim Barbosa ou Marcelo Freixo, e nem é objetivo deste texto discutir a pureza ou a santidade destas figuras. Apenas deixar claro, que àqueles que se opõem ao projeto neo-udenista frisam que o problema fundamentel do Brasil não é a “honestidade”, até porque não há paquímetro para se ficar medindo individualmente a honestidade de ninguém, honestidade é o MÍNIMO QUE SE DEVE COBRAR DE UM POLÍTICO, SEMPRE, mas não se deve elegê-lo simplesmente porque ele é honesto. NUNCA SE DEVE ELEGER UM POLÍTICO CORRUPTO, isto é um axioma que defendemos, e o Bloco Histórico Anti-hegemônico que se construiu na América Latina deve ser o mais ético possível, mas a discussão que devemos levar para as urnas é outra: REFORMA AGRÁRIA, AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA, SOBERANIA NACIONAL, REESTATIZAÇÃO DO PETRÓLEO, SAÚDE E EDUCAÇÃO PÚBLICA DE QUALIDADE PARA TODOS, REFORMA URBANA, REFORMA POLÍTICA COM FINANCIAMENTO PÚBLICO DE CAMPANHAS. Alguém notou que todas estas propostas, que abrangem menos de 1/10 de tudo que devemos defender são propostas puramente POLÍTICAS? Que existem e podem existir dezenas, talvez centenas de candidatos reacionários, de direita, ou de extrema-esquerda sem proposta MAS HONESTOS? A disputa política não é a disputa de quem é mais santo, não é uma disputa messiânica de nomes, mas uma disputa de projetos políticos. Nesta disputa a ética deve permear as nossas candidaturas, mas o projeto é em sua essência POLÍTICO. A disputa não é em torno de quem é ou quem não é corrupto, até porque, muitos dos paladinos da moralidade, à direita e à esquerda, são corruptos até a medula óssea, mas sim, que projeto pode mudar a estrutura do BRASIL, INVIABILIZANDO INCLUSIVE, ESTRUTURALMENTE, A CORRUPÇÃO. Ou alguém é capaz de negar os avanços feitos em transparência nos Governos Lula e Dilma? O Brasil não está mais corrupto que antes, a cobrança da sociedade que está mais organizada é maior, e os mecanismos de transparência são melhores, viabilizando denúncias e investigações que antes eram represadas e ou engavetadas.
Todavia, há a corrupção LEGALIZADA, que começa pelo financiamento privado de campanha, LEGAL, PORTANTO “ÉTICO”, continua nos grandes llobies de bancos, latifúndios, bancada evangélica e católica conservadora, empresas de saúde, tudo LEGAL E PORTANTO, na falsa ética UDENISTA, seriam “ÉTICOS”, porque não quebram nenhuma regra legal. Colocar a ética no respeito a leis, leis estas conservadoras e mantenedoras do Status quo reduz a ética ao papel calhorda de justificação do sistema. A ética é algo bem maior do que isto e se situa no espaço de disputa de uma nova sociedade. Que ETHOS, que projeto de novos homens, de novo bloco histórico e de novos agentes coletivos necessitamos para mudar o Brasil? Esta uma verdadeira discussão ética, que inclusive tem de enfrentar a questão da ruptura com atitudes subversivas em política e que vão para além da legalidade institucional e burguesa. No campo meramente legal da ética do bom mocismo ocupar latifúndios para se fazer reforma agrária é ou não ético? Com certeza, para o campo conservador do Cansei isto não seria ético, para quem quer mudar ou transformar a viabilização e inclusive o financiamento do movimento de luta pela terra no campo é em essência ético, tendo que necessariamente ultrapassar os marcos legais impostos a nós pelo capitalismo.
Frisamos, como conclusão, que o fato de Isto todavia não leva à conclusão inversa, bem, se não há santos, então, há canalhas. Nada disto. O mundo não é habitado por santos e se o é, eles devem discutir o mundo espiritual, o futuro em uma outra vida provável, e não a estrutura política do Brasil. Esta é apenas uma discussão política.
Destituída de sua auréola de santidade, a discussão passa a ser apenas e tão somente dos projetos em luta no Brasil. Eu, politicamente (e não eticamente, esta não é uma discussão ética) estou convencido de que o atual projeto que governa o Brasil é progressista, porque potencialmente anti-hegemônico e fez mudanças estruturais importantíssimas. Isto sem preconceito ou ataques ad homines, mas defendo até o fim o direito de os companheiros defenderem o contrário, sem este argumento falacioso que a questão principal do Brasil é ética. Na premissa falaciosa colocada é exatamente isto que precisa ser provado!
Na verdade, quem defende estes movimentos messiânicos, de direita ou de esquerda, os defende por motivação puramente política, mas necessita usar do discurso ético, já que vimos que é um discurso que está em voga na atual falta de politização da sociedade e na falta de um projeto definido tanto pela direita, quanto pela extrema esquerda messiânica.

Por que os movimentos pseudo-éticos cativam a imaginação da classe média despolitizada?

Somos uma geração pós-revolucionária. Não pela ditadura militar de 64, que não foi uma revolução, mas por sermos a geração pós Maio de 68, pós Woodstook, pílula e Revolução Sexual e, por outro lado, fomos educados no pós-ditadura, com o medo de nossos pais, e na “ética” do individualismo.
Os sindicatos e partidos políticos sobrevivem e lutam, em meio a uma onda de descrença. Participar de um sindicato ou partido político é remar contra a maré. É retomar o discurso político contra o discurso individualista, então, o preconceito, a visão deturpada do que seja o político e o sindicato grassam no senso-comum.
No discurso pseudo-ético, a política é a terra da desonestidade, as formas de organização política são más e não há escape para quem participa nelas. Ora, qualquer forma de organização que se faça à margem dos sindicatos, partidos políticos e seus “complicados” ritos democráticos (assembleias, plenárias, congressos, discussões exaustivas) fará um relativo sucesso.
Imagine então, um movimento que ataca a forma de organização política, que promove o rebaixamento da política a uma discussão de quem é honesto ou desonesto, a uma busca de um purismo episcopal não participativo. É tudo que esta geração aprendeu, não participar, não se organizar, não ter compromisso, não ser coletivo.
Por que o desgaste de um piquete ou de uma passeata? Por que o esforço de uma organização política permanente na qual se perdem preciosas horas da vida? Por que se organizar e perder horas preciosas de fala tentando convencer e ser convencido, quando há uma série de diversões e entretenimentos individuais julgados por muitos como mais importantes?
Parte-se de um a-priori “ético” e se atacam todas as formas verdadeiras formas democráticas de participação política real em sindicatos e partidos políticos. Assim, uma manifestação com vassourinhas para cima, de um punhado de gente da classe média vale mais que a vontade popular de milhões depositada nas urnas, num projeto de mudança lento e necessário, simbolizado pelos dois últimos governos, Lula e Dilma, representantes no Brasil do bloco anti-hegemônico latino-americano.

A histeria coletiva do mensalão e a catarse do STF

Entendendo este caldo de cultura, é possível vislumbrar porque o espetáculo pífio do mensalão consiga relativo sucesso entre a classe média desorganizada. Primeiro, a classe média não se vê neste Governo. A classe média sente-se lograda, mas não sabe bem porque. As camadas médias sempre foram aquelas espremidas entre a burguesia e o proletariado, todo o Governo que governe para as camadas proletárias e semi-proletárias sempre causa desconfiança, as vezes pavor na classe média. É importantíssimo vislumbrar que todas as ditaduras nazistas, fascistas, proto-fascistas se apoiaram na Classe Média. O Nazismo foi um movimento de massas da Classe Média e do Lumpen Proletariado, o proletariado sempre foi o único inimigo de verdade no nazismo na Alemanha e nunca foi ganho de verdade para o movimento nazi-fascista. Todas as ditaduras militares da América Latina tiveram sua base na Classe Média. O Golpe de Pinochet contra Allende, a Marcha da Família com Deus e a Propriedade e a TFP no Brasil, o Milagre Econômico, sempre tiveram apoio político ideológico da classe média.
A Classe Média não se vê neste Governo, mesmo que este Governo não a prejudique. Ainda que o Governo Dilma tenha 77% de popularidade, ele nunca terá a confiança e o apoio resoluto da classe média, prova disto é o mapa de votação das últimas eleições. Marx dizia que a classe média só assume posições proletárias quando está em vias de se proletarizar, e na luta de classes tem posicionamento ambíguo, morrendo de medo de virar proletário, mas ao mesmo tempo tendo que se defender da exploração da burguesia. As políticas compensatórias e igualitárias dos Governos PeTistas não tem nem ressonância nem apoio da Classe Média. O aumento do salário mínimo de 70 dólares para 350 dólares mexeu com a estrutura feudal das famílias de classe média brasileira. O espetáculo das mucamas a serviço da classe média, com salários de fome foi ameaçado,a exigência de direitos às trabalhadoras e trabalhadores domésticos é uma opção de classe que não pode ser ignorado. A classe média sentiu no bolso e na perda do status quo. O trabalho de mucama privativa está em vias de extinção, é há que se profissionalizar o setor doméstico, com creches e outros serviços de atenção à casa para que este seja viável, a classe média nunca perdoou o Governo por isto.
Além destas políticas, uma outra série de políticas que mexe com a estrutura patriarcal e racista da pirâmide brasileira, como a distribuição de renda através do Bolsa Família, Brasil Carinhoso, o Pro-Uni e a política de quotas raciais, que dobrou o número de negros nas universidades públicas brasileiras e dobrou o número de estudantes pobres nas universidades, ameaça a hegemonia censitária que estava ligada ao acesso privilegiado de poucos à informação. Pode ser políticas que, à primeira vista, não impactam à classe média, mas que efetivamente são as políticas que a classe média mais ataca e ridiculariza. Bergson já dizia que o humor é uma forma de censura social. Atacar estas políticas com deboche e histeria é a forma que a classe média sem propostas e minoritária nas urnas tem para se vingar da sua perda de representatividade política com o protagonismo das camadas proletárias e subproletárias representada no projeto do PT. Não é pouco pensar que um exército de mucamas e serviçais que vendiam a troco de banana seus serviços para a classe média tiveram uma grandiosa valorização com a política de salário mínimo, fazendo com que o Brasil se pareça menos com o país das capitanias hereditárias e comece a construir uma pirâmide social mais justa, mas parecida com países de capitalismo moderno. É claro que não acabamos com a pobreza ou com a injustiça social, mas o pouco que foi feito já mexeu com os brios de uma classe média que sempre se sentiu “privilegiada” pelo acesso privativo a uma série de serviços baratos, às custas da miséria de um grande setor proletário e subproletário. Estes serviços foram inflacionados pela política de salário mínimo (não à toa a inflação da classe média que consome serviços foi maior que inflação do proletariado) e a elevação do nível de vida fez que o acesso a bens de consumo deixasse de ser uma marca distintiva de classe.
Isto leva a um sentimento de impotência política e de perda de valor de classe, que se expressa no sentimento de que este Governo não é nosso, da Classe Média. Junto a este caldo de cultura, a ideologia grosseira de uma mídia brasileira completamente controlada pela direita, das TVs e Rádios, às grandes revistas e jornalões. Derrotada na urna, a elite brasileira se reagrupa não como partido político tradicional, mas na produção política da grande imprensa que forja uma grande farsa midiática para barrar o projeto de mudanças do primeiro Governo Lula, o mensalão. Diante da resistência e reação popular, a tentativa de Golpe branco fracassa em seus princípios, mas se mantém, como sombra, como uma espécie de catarse coletiva contra um Governo que não é da elite, nem da classe média.

TODOS SÃO CULPADOS A MENOS QUE SE PROVEM O CONTRÁRIO

Para finalizar, não vou entrar numa análise detalhada do mensalão, não sou jurista, minha área é a ética, a filosofia e a política. Mas definitivamente o mensalão foi uma catarse da direita, da elite, contra o projeto vitorioso do bloco anti-hegemônico de Centro-esquerda no Brasil. Não vou entrar na análise de se o PT perdeu ou não seu viés ético, ou se igualou aos outros partidos no poder. Esta análise levaria a uma minudência de fatos que foge ao objeto deste ensaio, ainda que os números não provem que o PT seja o Partido mais corrupto do Brasil, pelo contrário, pelos números absolutos e percentuais dos políticos barrados pela lei da Ficha Limpa, o PT seria um dos partidos mais éticos do Brasil. Quero entrar no cerne da histeria coletiva chamada “mensalão”.
Bons e grandes amigos meus se desesperam quando eu digo, alto bom som “nunca existiu mensalão”. Os argumentos viram argumentos ad hominem: “Você acredita na honestidade de Sívinho Land Rover?”. “Você acredita na honestidade de Delúbio Soares”? Nunca entro neste debate, até porque o STF não estava julgando a honestidade, ou o grau de honestidade de nenhum dos réus. A nenhum tribunal é dado fazer isto, apenas a tribunais de exceção, como os da Alemanha Nazista, ou os dos famosos Julgamentos de Moscou, nas quais as pessoas eram julgadas de acordo com seu grau de culpa perante o “Estado”. O STF julgou uma tese e julgou de forma política e sem provas. Desde o Procurador Geral da República, que diz, sem nem ficar com vergonha: “provas não existem, porque quadrilha não deixa provas”, até os votos dos relatores e ministros.
Ficou claro, como na inquisição, que o importante era condenar, com ou sem provas, porque era necessário demonizar os réus. Algumas falas foram paradigmáticas e demonstram ao grau de loucura coletiva que o julgamento político pode levar uma corte de um partido em pleno Estado Democrático de Direito (perdoam-se juízes de países de Estados com ditaduras, porque estes na verdade, muitas vezes, querem manter sua própria integridade física) a insculpir pérolas como: Ministra Carmem Lúcia: “Fala-se houve caixa 2 como se caixa 2 não fosse crime”, sim, é crime, mas crime que não estava sendo julgado e que o STF, como tribunal que defende a reserva legal, só julgar os réus pelo crime que estão sendo acusados, não podia, sem ferir de morte a legitimidade do Supremo, atacar, ou seja, os réus seriam acusados pelos crimes pelos quais não foram pronunciados. Ou do nada saudoso Ministro Ayres Britto, que falou de teoria da conspiração: “O mensalão é um projeto do PT para se perpetuar no poder”. Primeiro, falta provar o essencial, e que não foi provado neste caso Dreyfuss e incêndio do Reichstagg brasileiro, o de que houve mensalão, segundo, construir esta hipótese, a de que o mensalão é um “projeto de perpetuamento político” é pura conjectura política que foge da alçada de um Ministro de um tribunal democrático.f
Assim, com um Tribunal que julgou réus por crimes que não cometeram (se cometeram outros possíveis crimes que sejam pronunciados por estes e julgados nos tribunais competentes), com uma mídia querendo um projeto para a direita e uma desforra, e com uma classe mídia sedenta de fazer uma catarse contra um Governo que ela pensa que não a representa, ainda que a estabilidade econômica e a queda de juros atinjam toda a sociedade, o mensalão é o ápice da falta d proposta politica, de engajamento, de despolitização de um sociedade.
A catarse histérica da direita e da classe média derrotada nas urnas e tem o mesmo significado pífio e apagado dos juízes dos ministros que ao fazerem uma condenação inquisitorial inscreveram seus nomes na calçada da fama dos tribunais de exceção.
Meus amigos de classe média sempre me perguntam, afinal, você acha que eles são inocentes? Eu sempre respondo, não sou eu que tenho que provar a inocência de ninguém, peço a meus amigos bem intencionados, mas histéricos, que me tragam alguma prova real da culpa de quem foi julgado politicamente para dar um discurso a uma direita que perdeu o discurso e o projeto político no Brasil e que é apoiada por uma extrema-esquerda, tão histérica quanto a classe média que na verdade compõe seus quadros.

A influencia de Garcia Lorca na poesia de Pablo Neruda

A influencia de Garcia Lorca na poesia de PabloNeruda, de minha autoria.
A influência de Federico Garcia Lorca
na evolução da Poesia de Pablo Neruda
Rio de Janeiro
junho de 2007
Resumo
O objetivo deste trabalho é fazer um estudo comparativo da obra do poeta chileno Pablo Neruda, situando sua poesia dentro do contexto de sua atribulada vida e mostrar que as mudanças de posição político-ideológica, causadas principalmente pelo encontro com Federico Garcia Lorca e a Geração de 27 na Espanha (com a tragédia da Guerra Civil na qual os amigos de Neruda são presos,  assassinados ou exilados) levam a uma mudança estética e de temática na obra nerudiana, que assim vai se “contaminar” de Espanha e de Lorca, de maneira antropofágica, ou seja, Neruda recebe a influência espanhola e a traz para um modo poético chileno. Assim, o recorte estudado nesta monografia é exatamente este salto qualitativo dialético (vista a dialética da maneira hegeliana-marxista, de desenvolvimento do pensamento através de contradições, de opostos, de superações; aplicação do materialismo dialético como instrumental para interpretar e modificar o mundo), no caso de um Neruda inicial, místico e descompromissado, frente a uma situação limite da Guerra Civil que o leva a uma superação de seu pensamento inicial, amadurecendo para o campo oposto de compromisso e engajamento político-social. Isto ocorrerá na vida do poeta chileno por conta de uma experiência traumática, mas ao mesmo tempo rica para a história da humanidade, como foi a Guerra Civil Espanhola (já que foi o prenuncio e o campo de experimentação da Segunda Grande Guerra, que mudará a face do mundo), quando Espanha se dividiu em duas metades e o lado “errado”, a direita fascista e conservadora, venceu a guerra. É com Espanha no Coração, texto redigido durante a guerra, que se fará toda a mudança na obra literária de Neruda.
Palavras-chave: Guerra Civil Espanhola; Mudança estética; Mudança temática;
Sumário
1.  INTRODUÇÃO 6
2.  OS PRINCÍPIOS DA POESIA DE PABLO NERUDA 8
2.1  Amadurecimento da visão do mundo 10
2.2  O poeta e sua passagem pelo Oriente 14
3.  NERUDA E SUA PASSAGEM PELA ESPANHA 18
3.1  Neruda e a influência da poética de Garcia Lorca 18
3.2  O sofrimento do poeta com o choque da guerra 23
4.  MUDANÇA IDEOLÓGICA – NERUDA VIRA À ESQUERDA 26
4.1  O marxismo na vida do poeta 26
4.2  A estética social e socialista de Pablo Neruda 30
5.  Conclusão 34
6.  Referência Bibliográfica 36
7.  ANEXOS 37





1.  INTRODUÇÃO
Esta monografia tem como objetivos, mostrar a transformação dos temas e da forma poética de Neruda, a partir de sua estada na Espanha, durante a Guerra Civil Espanhola, quando o choque do confronto fará o poeta repensar toda a sua vida e sua arte; além de analisar a motivação social na poesia de Neruda, a partir de sua passagem pela Espanha e seu contato com os jovens poetas da Geração de 27, que influenciarão a estética nerudiana com o modernismo em voga na Espanha de então; também comentaremos a estrutura dos poemas de Neruda comparados aos poemas de Federico Garcia Lorca, o principal poeta modernista Espanhol; assim como compararemos os temas populares presentes tanto nos poemas de Lorca, quanto em Pablo Neruda.
Ricardo Neftali Eliézer Reyes Basoalto, o cidadão do mundo Pablo Neruda terá várias mudanças em sua vida, a mais significativa, sem sombra de dúvida, será a sofrida durante sua passagem na Espanha Republicana, que passará pela Guerra Civil. Este trabalho enfatizará como esta vivência espanhola  transmutará o mundo e os versos de Neruda, ou seja, o trabalho bordará, em planos paralelos, a mudança na concepção de mundo versus as mudanças na estética e na temática do poeta chileno, o qual vivenciará tanto a guerra civil como   o torvelinho da jovem Geração de 27, a mais fecunda esteticamente e em termos de temática no modernismo espanhol, usando-se, como exemplo, o mais fecundo entre os fecundos, Federico Garcia Lorca, o mais influente e famoso dos poetas desta geração.
Amigos desde a chegada de Neruda a Madrid, chegarão a trabalhar juntos na criação da revista Caballo Verde. O cerne do trabalho ora exposto é expor como esta vivência fara com que a estética e a temática de Lorca seja refletida na obra do amigo Neruda. Como Espanha se entranhará na obra do poeta chileno, a ponto de ser o lugar com mais citações em sua obra, depois do Chile, uma segunda pátria, adotiva, que deixará uma marca indelével na obra poética posterior nerudiana.
Será usada, como forma de provar a tese apresentada, uma pequena biografia literária de Neruda mais a comparação da obra anterior e posterior do poeta, assim como a comparação da temática e da estética de Neruda com a obra e a estética de Lorca, mostrando os lugares-comuns na produção de ambos, como, por exemplo, a adoção dos motivos populares de inspiração nos poemas: a Barcarola de Neruda é inspirada nas aventuras de um bandoleiro comum chileno; O Cante Jondo de Lorca é inspirado na vida aventureira dos ciganos, povo perseguido e discriminado na Espanha de então (e também na Espanha franquista). Ao final, na conclusão, estará a poesia de Neruda transformada em canto social e de denúncia.
2.  OS PRINCÍPIOS DA POESIA DE PABLO NERUDA
Pablo Neruda é, antes de chegar à Espanha, na construção inicial de sua poesia, um poeta metafísico, panteísta (com alguma influência de sua mestra na infância, a também prêmio Nobel de literatura, Gabriela Mistral), com inspiração na natureza e na mulher, com muito talento, mas com pouca preocupação com a temática social. Como exemplo, o texto abaixo, de Proêmio, poesia de Cadernos de Temuco (Neruda; 1998, p.27): “Uma rota de sol e uma luz e um roseiral./ Nada mais eu pedia e naquela inquietude/ pousaram as sedas da minha branda canção”.
O poema referido reflete as preocupações iniciais do jovem Neruda. Um poeta pobre, que parte para Santiago para estudar literatura (contra a vontade paterna, que o queria engenheiro), que é extremamente tímido e avesso às badalações, que veste roupas negras e escreve versos ora místicos, ora panteístas, ora românticos, extremamente exagerados em seus arroubos líricos, versos estes para as irmãs de seus companheiros de universidade e de boemia. Não há nenhum traço que indique que ele será um poeta militante, engajado política e socialmente, como em sua história pessoal das décadas posteriores, de militância política assumida no Partido Comunista Chileno, do qual chega a ser senador e candidato à Presidência. Ricardo Neftali Eliézer Reyes Basoalto, um jovem que para escrever poesia vai cunhar um pseudônimo transformado depois em nome, Pablo Neruda. Como o pai de Ricardo não o queria estudando poesia ou escrevendo poemas, mas sim engenheiro, advogado, ou outra profissão que prometesse melhor futuro; por conta desta reprovação paterna, o jovem poeta vai tomar de empréstimo o nome de um poeta checo. O interessante desta anedota é que o Neruda original não chegou a ter a metade da fama daquele que lhe tomou de empréstimo o nome. Nosso Neruda, o poeta chileno, nesta época pouco se imiscui na política, ele não se infiltra em nenhum movimento de protesto organizado, nenhuma marcha de trabalhadores, nenhum ato socialista, nenhuma greve, não toma parte em sindicatos ou partidos políticos, o máximo que faz é escrever poemas em jornais estudantis de cunho anarquista (mas não textos políticos), em suma, ele não representa nenhuma ameaça à ordem reinante no Chile. Está bem distante de ser o poeta subversivo do futuro, é antes um jovem absorto na literatura e procurando publicar seus livros e fazer sucesso com eles. Suas obras vão refletir, nesta época, as leituras apaixonadas de poetas espanhóis como Gôngora e Quevedo, Bécquer, Garcilaso de La Vega e de hispano-americanos como Rubén Darío, Gabriela Mistral. Numa dualidade entre o misticismo panteísta e o lirismo-romântico, a obra nerudiana ainda não tem a marca do político-social em seus primeiros livros.
2.1  Amadurecimento da visão do mundo
Nesta época da juventude do poeta, nos anos 20 do século passado, Neruda é de uma poesia primaveril, juvenil, onírica e panteísta. Neste tempo o poeta vive principalmente as sensações mais diretas que vida lhe dá, numa relação direta com a natureza, absorto na contemplação dos ritmos vitais, da música do universo. Na década de 20, Neruda não tem nenhum posicionamento filosófico definido e nenhum engajamento político social, o máximo que Neruda se permite é uma aproximação a círculos estudantis anarquistas em Santiago (dos quais não tomará parte como ativista, senão como um simpatizante à parte). A natureza e as mulheres são seu principal material inspirador; dotado, que era, de uma sensibilidade incomum e sensualidade sempre constante, forte, com uma ousadia acima da moral da época. No texto supramencionado vislumbramos um pouco do lirismo do poeta,  ainda que, em Cadernos de Temuco, ele seja pouco mais que um adolescente. A poética nerudiana, todavia, amadurecerá, florescendo pouco a pouco. Já no livro Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, vê-se um poeta que, ainda que continue não engajado em lutar por mudanças sociais, em termos de forma, vive uma grande maturidade na parte estética. Não parece o livro de um jovem escritor, ainda principiante nas letras, mas sim a obra de um poeta seguro esteticamente em seus experimentos e ousadias na linguagem e na forma. Com este livro, Neruda alcançará, ainda muito jovem, fama e prestígio literário, mesmo entre os críticos mais exigentes, que vislumbram no jovem poeta um talento inato.
Vejamos este outro texto lírico, no qual não se oculta o panteísmo, na comparação da mulher com a natureza, em um livro artisticamente bem mais elaborado, que é o Vinte poemas de amor e uma canção desesperada.
“Casi fuera del cielo ancla entre dos montañas la mitad de la luna.
Girante, errante noche, la cavadora de ojos.
A ver cuántas estrellas trizadas en la charca.
Hace una cruz de luto entre mis cejas, huye.
Fragua de metales azules, noches de las calladas luchas,
mi corazón da vueltas como un volante loco.
Niña venida de tan lejos, traída de tan lejos,
a veces fulgurece su mirada debajo del cielo. ”
(Neruda; 1999,  p. 23):
Estes belos versos, despolitizados, é verdade, mostravam um Neruda que não era pior que o Neruda Pós-Espanha. Os versos de Vinte poemas estão dentre os melhores de Neruda, ainda que neles cantem traços românticos tardios, gongóricos (Gôngora fora um dos poetas prediletos de Neruda na adolescência), com jogos de palavras e exagero de figuras de linguagem, com um panteísmo esotérico. Neruda não era um católico praticante, seu panteísmo não se traduziu numa religiosidade confessa, como o de Gabriela Mistral, sua evocação da natureza antes, traz a marca do divino sem definir claramente a figura de uma determinada divindade. Se Deus está na poesia da Neruda, em nenhum momento ele expressa isto claramente, mas o ritmo que o poeta capta na natureza é um ritmo que transcende um mero naturalismo narrativo e explode em cores místicas, de um esoterismo que busca o metafísico, os significados esotéricos, para além da matéria. Neruda traz em toda sua obra a marca de sua infância passada no interior do Chile, quando passeava com seu pai de locomotiva, não só por Temuco, mas por toda a cordilheira andina chilena e encantava-se com a imponência da selva andina. Esta vivência, afastado das grandes cidades, isolado no interior do país, em contato permanente com uma América ainda indomada, vai brotar por toda a vida do poeta em seus escritos, mesmo em sua fase mais militante.
Para José Carlos Rovira, um dos mais importantes e respeitados nerudistas, a infância de Neruda em Temuco, o contato estreito com a natureza selvagem chilena vai imprimindo no poeta a impressão fortíssima de uma natureza selvagem e indomada, na qual explodem fenômenos de raríssima beleza, dentro da selva andina. Veja no anexo, o texto extraído de Rovira, José Carlos; Para leer a Pablo Neruda, 1991, do qual retiramos um pequeno trecho.
En el principio fue la soledad de Temuco, la estación de ferrocarril donde trabajaba su padre, la costa cercana de puerto Saavedra, la naturaleza deshabitada, la flor del copihue, el ruido de los trenes o su silencio, el rumor del mar o todos los sonidos de la naturaleza, agolpados a las palabras que se van aprendiendo para llamar a cada cosa por su nombre.  (...) La infancia en Temuco es un aprendizaje de soledad y naturaleza; (...) En Confieso que he vivido narró el poeta ampliamente todas las sorpresas de aquella infancia: la naturaleza que le provoca «una especie de embriaguez», los pájaros y su canto, los insectos, o los juegos infantiles. (...) (Rovira; 1991, p. 57).
Nota-se nas palavras deste importante crítico que a construção poética inicial de Pablo Neruda, de Cadernos de Temuco até Vinte poemas de amor, tem uma unidade essencial, baseada na natureza, na busca do eu interior, no fascínio e na exaltação pela mulher. É um poeta em desenvolvimento, em busca insaciável, vivendo a vida com intensidade interior e a registrando em seus poemas. Há uma linha condutora, com o desenvolvimento dos mitos poéticos iniciais realizados no tempo dos seus amores juvenis, intensificada no momento essencial da passagem dele em Santiago, quando começa a tomar contato com uma outra realidade, que não a vivida em sua infância em Temuco. Pablo Neruda crava seus primeiros acordes, em seus poemas iniciais há a falta ainda das notas político-sociais, mas as outras notas não são menos belas ou impressionam menos, pela força e pela vivacidade da poesia. O poeta carrega consigo Temuco e a natureza do Chile, é o que ele mesmo diz em Confieso que he vivido:
“El copihue rojo es la flor de la sangre, el copihue blanco es la flor de nieve... En un temblor de hojas atravesó el silencio la velocidad de un zorro, pero el silencio es la ley de estos follajes... Apenas el grito lejano de un animal confuso... La intersección penetrante de un pájaro escondido... El universo vegetal susurra apenas hasta que una tempestad ponga en acción toda la mística terrestre.
Quien no conoce el bosque chileno, no conoce este planeta.
De aquellas tierras, de aquel barro, de aquel silencio, he salido yo a andar, a cantar por el mundo (Neruda;  Julio de 2005, p 12).
Nestas palavras do próprio poeta sobre o bosque chileno, tiramos a prova concreta das matizes panteístas e místicas do Neruda inicial que, combinadas com a lírica sensual-erótica da exaltação à mulher são a base no qual são estruturadas as suas primeiras obras. Em 1924 a editorial Nascimento, de Santiago, publica os Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, no qual se vislumbra  uma sensibilidade visceral, pós romântica, numa relação direta com o leitor que o tempo haveria de aprimorar, com influências que vão de Gabriela Mistral a Gôngora e Quevedo. Ainda não é o Neruda moderno e pós-moderno que nascerá no livro Espanha no Coração. Evolução realizada em livros como Memorial de Isla Negra e Residência na Terra III, como o próprio reconhece em Confieso que he vivido: El mundo ha cambiado y mi poesía ha cambiado. Una gota de sangre caída en estas líneas quedará viviendo sobre ellas, indeleble como el amor (Neruda, Pablo, 2005, p.37).
Ainda não haviam lágrimas, nem dores no caminho de Neruda antes de sua ida  a Espanha. O jovem poeta, já famoso e popular, começa a dar os primeiros passos na vida cultural em Santiago, aproveita-se de suas amizades iniciais e de seu prestígio de jovem prodígio para conseguir uma colocação como Cônsul e é designado para a Birmânia, país no qual viverá praticamente no ostracismo, recluso na pequena localidade para o qual foi mandado e onde terminará os livros Residência na Terra I e Segunda Residência na Terra, altamente místicos e, poderíamos dizer, existencialistas, no sentido mais formal do termo, já que a preocupação do poeta é com sua “vida interior”, com seu “eu interior” apenas e tão somente. Esta é a tríade que caracteriza a fase inicial de Neruda: Lirismo, baseado na figura da mulher; panteísmo, com adoração da natureza e, por último, esta preocupação mística-esotérica, num torvelinho, num turbilhão de emoções que a solidão num país com uma cultura completamente diferente (a qual Neruda não tentou desvendar ou compreender) vai levar o poeta.
2.2  O poeta e sua passagem pelo Oriente
Neruda já tinha lançado quatro livros em 1926: Crepusculario. Santiago, Ediciones Claridad, 1923; Veinte poemas de amor y una canción desesperada. Santiago, Nascimento, 1924; Tentativa del hombre infinito. Santiago, Nascimento, 1926; El habitante y su esperanza. Novela. Santiago, Nascimento, 1926. Como o próprio poeta falava, ele se refugiava nos livros com a ferocidade de um tímido, mas conseguiu algum prestígio, fama e certo reconhecimento nos meios literários e culturais, principalmente com os Vinte Poemas, que serão fartamente premiados. Como já citado, o poeta pobre e interiorano vai usar do prestígio e do conhecimento alcançados para começar uma carreira diplomática. Seus amigos intercederam por ele junto ao Ministro das Relações Exteriores do Chile e o poeta será nomeado Cônsul do Chile em Rangoon, uma região extrema da Birmânia, onde passará uma obscura vida de burocrata, reduzido a assinatura de pequenos papéis relativos a exportação de chá do Chile para o Oriente. Ainda que Neruda houvesse abraçado uma carreira que tem relação com a política, isto não o levou a criar uma consciência social, na verdade o diplomata era mais um burocrata responsável por assinar os papéis de importação de chá para a Birmânia do que um representante político chileno. Suas funções consulares à época eram bastante reduzidas e ele se entregou a uma experimentação, que esteve bem longe de ser mística. Neruda terá experiência com várias mulheres orientais e, nos momentos em que a sua carreira diplomática deixava, viajava e explorava os povoados do Oriente, em busca não de experimentações místicas, mas de contato humano. Estas visitas não tinham caráter esotérico ou religioso, é impressionante a dicotomia que há na poesia desta época, com arroubos místicos e a visão materialista direta do mundo. Neruda não se encanta com o Oriente, só consegue ver miséria, tristeza, abandono, no lugar no qual outros poderiam ver o fervor místico. Pelo contrário, o cônsul vai fazer uma relação de efeito-causa e vai depreender o misticismo dos povos  orientais de uma necessidade de filosofia estóica de vida, para sobreviver se submetendo a tanta miséria. Isto não o leva a uma atitude de revolta ou de contestação, mas o fato de ele romper as cortinas místicas e enxergar a realidade material concreta, determinada socialmente e não religiosamente, já é o primeiro passo que possibilitará o nascimento do Neruda engajado e militante do futuro. Veja o que Rovira, José Carlos, fala da poesia Nerudiana desta época:
En 1927 comienza la biografía consular del poeta. A través de ella, otra naturaleza, la de Oriente, se pone ante sus ojos, para ser la base de una nueva experiencia poética. En 1927, es nombrado cónsul en Batavia (Java); en el 31, en Singapur. Son cuatro años que configuran una nueva construcción en el quehacer literario de Neruda, años de viajes, naturaleza, amores, y años, sobre todo, de definición de un mundo profundamente original que hace entrar al poeta en una dimensión diferente.” (Rovira, 1991, p. 34).
A poesia de Neruda desta época, Residência na Terra e parte de Segunda Residência na Terra, será ainda mais mística, esotérica, interiorizada, preocupada em definir o poeta como um ser humano em busca de sua essência existencialista, que não está, de maneira nenhuma, relacionada a um papel social coletivo, pelo contrário, prefere caminhar pelos labirintos da busca mística, do onírico, do panteísmo, ainda que mantenha um traço lírico erótico que vai perdurar como linha tênue de costura em toda a poesia de Neruda que fala do amor. Como já observado, há uma dicotomia entre o cônsul que já divisa a miséria no meio do fervor místico e o poeta que se interioriza e constrói um pensamento individualista, como uma forma de proteção àquele Oriente que o assusta, o atemoriza. Pablo Neruda, em nenhum momento vai conseguir se adaptar à vida na Birmânia. Ao contrário do que aconteceu na Espanha, Neruda será apenas um trabalhador, obrigado a fazer uma passagem pelo Oriente, vendo tudo com olhos de turista acidental, em nenhum momento ele vai conseguir se inserir no contexto daquela realidade tão diferente da que havia em sua terra natal
Alguns críticos, como Saul Yurkievich vão considerar esta obra de Neruda  no Oriente, Residência na Terra, como obra de vanguarda, nela o poeta começará a fazer a ruptura com o passado, já que haverá uma renovação profunda das concepções e formas, com relação a seus primeiros poemas. Seu isolamento no Oriente fará com que ele busque no místico e na interiorização das emoções, nas imagens anímicas, o suporte para sua poesia, o que vai diferenciar bastante de sua anterior poesia lírica panteísta. Vejamos o que diz um crítico, Saúl Yurkievich, in A través de la trama.
Residencia en la tierra integra, junto con Trilce de César Vallejo y Altazor de Vicente Huidobro, la tríada de libros fundamentales de la primera vanguardia literaria en Hispanoamérica. Posee todos los atributos que caracterizan a la ruptura vanguardista. Surge íntimamente ligado a la noción de crisis generalizada y, promueve un corte radical con el pasado. Participa en la renovación profunda de las concepciones, las conductas y las realizaciones artísticas. Cambio de percepto y cambio de precepto van a la par. (Yurkievich, Santiago, 1984, p 5). Veja o restante do texto, nos anexos.
Assim, Residência na Terra pode ser considerado até certo ponto um livro niilista, porque fala do vazio, do ser submergido no mistério da existência, do naufrágio da vida. O poeta cônsul na Birmânia escreve uma obra com cunho existencialista sem ter aderido a nenhuma escola de vanguarda. Esta obra de Neruda, assim como a primeira parte da Segunda vão fazer parte da evolução de sua arte, ainda que não ficassem entre as obras pelas quais ele tinha mais apreço, o próprio poeta as considerava mais como indicativas das mudanças temáticas e estéticas do que propriamente como obras cruciais na sua trajetória, marcos de mudança essenciais apenas para que sejam captadas as guinadas que serão promovidas, ocorridas entre a fase que vai dos poemas iniciais até a primeira parte da Segunda Residência e, depois, a virada estética temática que vai acontecer a partir da segunda parte desta mesma obra. É o poeta vivenciando a experiência do Oriente de forma desencontrada e desesperadora. Ao mesmo tempo em que viaja misticamente em suas poesias, refletindo o orientalismo ao redor, é a fase de maior confusão sentimental na vida do poeta, uma fase promíscua na qual ele se submerge numa volúpia carnal, se aproveita das delícias da milenar arte do sexo cultuada pelo oriente. Terá um caso passional com uma nativa, que o abandonará numa cena tragicômica, mas terá uma série de outros casos e, ou relações sexuais sem grande ligação afetiva. Assim, com esta vida altamente erotizada, não é de se estranhar que mesmo na fase mais orientalista de seus textos, não deixe de aparecer a face sensual em seus poemas, mas numa sensualidade sórdida, como assevera Saúl Yurkievitch, na obra já citada:
Con referencia a la escala humana, Neruda opera un rebajamiento hacia los seres y actividades sin prestigio, practica un rescate poético de lo prosaico, de la experiencia ordinaria, de lo basto y grueso y hasta de lo degradante. En el plano de las manifestaciones corporales, ese descenso se presenta como crudeza somática, como ampliación descarada del decible corporal, como franqueza física y sobre todo sexual. (Yurkievitch, Santiago, 1984).
 Constata-se que há uma clara relação da vida conturbada de Neruda no Oriente, de sua reação psicológica de interiorização para se defender do mundo que considera hostil (ainda que, contraditoriamente participe ativamente deste mundo) e da poesia que escreve nesta época. Não é mais o texto lírico do poeta adolescente e pós-adolescente, é o texto de um homem maduro que tomou contato com o lado escuro do mundo, com o submundo, com as perversões e que as transcreveu em seus poemas, como o fizeram Walt Whiltman, James Joyce e Baudelaire. Com isto, Pablo Neruda consegue, com seus poemas escritos no Oriente, colocar-se ao lado da vanguarda mais progressista, em termos estéticos, em todo o mundo, mesmo que alijado geograficamente da revolução cultural que acontece na Europa. A experiência orientalista de Neruda o deixa pronto para o próximo passo na sua evolução poética.
3.  NERUDA E SUA PASSAGEM PELA ESPANHA
3.1  Neruda e a influência da poética de Garcia Lorca
O poeta Pablo Neruda, ou melhor, o cônsul Ricardo Eliézer, chega a Espanha em 1934, para um cargo em Barcelona. Em Madri travará contato com vários poetas da geração de 27, entre eles Alberti, García Lorca, Aleixandre, Miguel Hernández, Gerardo Diego, Cernuda, e, ainda que fosse chileno, portanto, estrangeiro; sua estreita amizade com eles o fará participar ativamente das mudanças estéticas, culturais e sociais patrocinadas pelos inovadores poetas de Espanha como se mais um poeta nativo fosse. Depois da terrível solidão por que passou no Oriente, o poeta chileno vê a Espanha como um lar, uma nova pátria, um lugar que adotou e pelo qual foi adotado. Em sua biografia, Neruda diz repetidamente que em Madrid, na sua casa da rua do Mercado, foi feliz. Veja esta citação do próprio poeta:
Pocos poetas han sido tratados como yo en España..." confidencia Neruda a Alfredo Cardona Peña "Encontré una brillante fraternidad de talentos y un conocimiento pleno de mi obra. Y yo, que había sido durante muchos años martirizado por la incomprensión de las gentes, por los insultos y la indiferencia maliciosa, drama de todo poeta auténtico en nuestros países me sentí feliz." (Apud, Citación del libro de E. Rodríguez Monegal, "El Viajero Inmóvil", Yurkievich, p. 15).
O encontro com Garcia Lorca e a amizade iniciada com ele em 1933, depois a estada de Neruda em Madrid, a partir de 1934, vão carinhosamente ganhar um lugar perpétuo na alma de Neruda. A estética de Espanha começará, pouco a pouco a mudar a poesia dele, e o poeta chega ao ponto de fundar e dirigir uma revista, Caballo Verde, na qual escreverão os principais poetas, tanto da geração de 27 já citada, como os da geração de 98, como Antônio Machado, este também amigo pessoal do poeta chileno. Segundo López de Abieda:
Las editoriales de la revista Caballo Verde para la Poesía demuestran la íntima correspondencia entre Neruda y los surrealistas españoles. La imaginación de Neruda se arrebola arrebatada por la vehemencia española. El cambio de registro, que también tiene que ver con el cese de la temporada infernal, la superación del ensimismamiento angustioso, la recuperación del gozo vital y de la solidaridad humana, es notorio en la parte final de Residencia en la tierra (Abieda, López de, 1986, p 15).
Neruda, um chileno, dirige uma publicação espanhola com a nata dos poetas nativos. Além de ser influenciado pelos espanhóis, Neruda irá também fazer escola e influenciar jovens poetas como Miguel Hernández. Espanha e Neruda se confundem e se mesclam, em determinados momentos, o poeta que aprende Espanha, começa também a ensinar Espanha e é adotado por ela, fazendo parte de seu destino comum, sem se negar a participar dele, inclusive tomando partido na época da Guerra Civil.
Fica claro que, quer seja na biografia escrita por terceiros, quer seja em sua autobiografia, Neruda jamais nega, antes reafirma e incorpora a Espanha Republicana e seus poetas como Lorca, Miguel Hernández, Antonio Machado, como influências palpáveis do caminho poético de Pablo Neruda. Lorca, em especial foi influência avassaladora. Ao se conhecerem, se identificaram um com outro, nascendo uma amizade com grande convívio, só interrompida com o assassinato do poeta andaluz Lorca. A vida de Lorca, com sua poética ligada aos andaluzes (Cancionero Gitano), aos ciganos, aos oprimidos, aos bandoleiros, aos marginalizados, às mulheres reprimidas; assim como a companhia de teatro mambembe que dirigiu, enfim,  tudo fará com que o poeta andino modifique a sua maneira de ver a poética, seus temas tornar-se-ão menos herméticos e líricos e se “contaminarão” de povo, da gente do cotidiano. Para ratificar, na citada obra de López de Abiada, há uma carta de Neruda, entregue em Paris, a Angela Figueira Aymerich, na qual o poeta descreve como a  Espanha faz parte de sua vida, de sua alma, de seu coração, como a Espanha está em seus sonhos. A íntegra desta carta está nos anexos, segue um pequeno trecho: 
Queridos poetas españoles, aquí me tienen muy cerca de la tierra española y lleno de sufrimientos por no verla y tocarla. Soy un desterrado especial, vivo soñando con España, con la grande y la mínima, la del mapa y la de las callejuelas, soñando con todo el amor que entre vosotros dejé, un desterrado que sólo puede acercarse al aire que perdió (...) (Abiada, 1984, p. 12).  
Em outra entrevista, com Antonio Collinas, Neruda voltará a falar da Espanha, e se mostra aborrecido porque alguns poetas espanhóis o tenham tachado de anti-espanhol (uma alusão a acusações de Panero, Ridruejo e Rosales, escritores espanhóis não simpáticos à República, que criticaram a poesia de Neruda, Espanha no Coração, como se ela fosse contra o povo espanhol e não contra Franco, posição esta tomada por eles, certamente motivada por questões ideológicas), já que havia tomado partido pró República. Na verdade, a crítica feita de um suposto antiespanholismo de Neruda, resume-se a uma crítica política, já que Neruda era na verdade antifranquista e ser contra Franco não representava ser anti-Espanha.
A influencia da obra de Federico Garcia Lorca (principal poeta republicano espanhol, covardemente fuzilado pelos fascistas, por supostamente ser “rojo y maricas” – referência à amizade de Lorca com os republicanos e ao homossexualismo – e depois jogado numa vala coletiva) é confessada por ele mesmo em Para Nascer Nasci:
Garcia Lorca era o antiesteta, neste sentido de encher sua poesia e seu teatro de dramas humanos originais do mistério poético. (...)Seu antiesteticismo é, talvez a origem de sua enorme popularidade na América. Desta geração brilhante (...) ele foi, talvez, o único sobre o qual a sombra de Gôngora não exerceu o domínio que em 1927 esterilizou esteticamente a poesia jovem da Espanha. (Neruda, Pablo, 1987, p 87).
Antiesteticismo que Neruda adotará desde então, que fará o poeta espanhol escrever odes às cebolas e aos gatos, poemas sobre sinos e uvas, um livro inteiro de poemas não metrificados, dentre os mais importantes de sua obra, que foi o Canto Geral, fica, então, claro que Neruda adotou positivamente esta oposição antiesteticista e com soluções bem à Lorca, libertou seus poemas das grades anteriores dos esteticismos pré-modernistas.
Esta admiração confessa de Neruda pelo grande amigo, Federico Lorca, refletirá na vida de Neftali, na temática (popular, por vezes mesmo mitológica e lendária, indianista) e na poesia (livre, solta, descompromissada em métrica e rima, por vezes; outras, musical, como o Romancero Gitano de Lorca):
Si vinieron los gitanos,
harían con tu corazón
Collares y anillos blancos
Niño dejadme que baile.
(...)Huye luna, luna, luna
Que ya siento sus caballos.
Niño, dejadme, no pises/Mi blanco almidonado. (Lorca, p. 134, 1999)
Compare-se com a Barcarola:
Ai, canta guitarra do sul na chuva, no sol lancinante
Que lambe os carvalhos queimados pintando-lhes as asas.
Ai, canta racimo de selvas, a terra empapada, os rápidos rios,
O inacabável silêncio da primavera molhada. (Neruda, 2001, p. 204).
Vemos, em ambos os textos, a mesma musicalidade, o mesmo ritmo pulsante, vivo, a mesma liberdade poética e estética, também a mesma liberdade temática. Se no Cancionero Gitano, Garcia Lorca destaca as façanhas dos ciganos, povo perseguido na Espanha, Neruda, na Barcarola, vai cantar as peripécias de um bandoleiro, de um justiceiro popular. As duas obras vão exaltar a vida fora dos padrões morais e legais normais.  Este consideramos o melhor exemplo da influência temática de obra de Neruda, sem falar na poética musicada, muito semelhante.
O Cante Jondo, a viola cigana de Lorca, continua ressoando na viola chilensis de Neruda. Transportada da Andaluzia para os Andes, ganhou nova roupagem, novo tempero, novo ritmo, mas nunca renegou sua ascendência. Não só no anti-esteticismo. Vejam a musicalidade de ambos os poetas. Se o poema de Lorca parece a viola de um cantor andaluz, o violão de Neruda não fica atrás, como uma zamba chilena ressonante. Ambos os textos parecem cantados, não é um anti-esteticismo que apela para soluções sempre não rimadas, os versos de ambos tem uma musicalidade intrínseca que dá a unidade e o formato aos poemas. Neruda em seus versos cantará, assim como cantava, em seus versos, Lorca, a musicalidade é mais um dos traços de Espanha que o poeta chileno carregará para o resto da vida.
Para Ático Villas Boas da Silva, importante crítico brasileiro de Federico Garcia Lorca:
Lorca estava acima de todos os seguidores dos ismos estéticos literários, pelo simples fato de se postar acima das camisas-de-força de cada um daqueles movimentos. Versátil, sabia aproveitar praticamente as lições de quase todas as tendências e escolas literárias para desembocar no artesanato da palavra, seu ofício maior. (Ático, 1999, p. 10).
Da mesma maneira, Neruda, seu amigo e companheiro, vai percorrer o mesmo caminho, de ecletismo acima dos movimentos literários da época, usando e abusando deles, sem se render a nenhum, vanguardas como dadaísmo, cubismo, surrealismo, futurismo, aproveitando o exemplo precursor de Federico. O que se notará no Neruda de então é não só a mudança na temática, com o comprometimento político do poeta com a Guerra Civil Espanhola e com os temas populares, tomados de empréstimo à Lorca; mas também, na forma: os versos cada vez mais soltos, livres, quase em prosa, por vezes, outras musicais, como o Cante Jondo. Um Neruda modernista, claramente influenciado pelos modernistas espanhóis, capaz de compor um poema elogioso a um bandido (Joaquim Murieta, na Barcarola), numa inspiração bem clara de Federico Garcia Lorca e suas elegias à vida fora da lei dos ciganos. O Neruda anterior, místico e panteísta, lírico e sensual continuará a existir, mas não será mais determinante, aparecerá ora aqui, ora ali nos poemas. Sua temática existencialista anterior cederá passo a uma temática mais popular, mais próxima do homem do povo, do cotidiano, do dia a dia, dos problemas sociais; assim como a forma se livrará das influência anteriores de maior rigor formal, já que Neruda fora árduo leitor de Gôngora e Quevedo e de outros poetas formalistas, ou de derramamentos de figuras de linguagem bem românticas, caminhando para um texto mais direto, quase coloquial, espécie de poema-prosa, inventário das estórias e dos anseios do povo chileno, como no Canto Geral; de outras vezes, surgem poemas musicais, que embora não estruturados em rima, possuem uma dinâmica musical intrínseca que os fazem ser espécies de canções a serem declamadas em ritmo musicado, da mesma maneira que fazia, anteriormente, o poeta andaluz, Federico Garcia Lorca.
3.2  O sofrimento do poeta com o choque da guerra
Vimos que a imaginação de Neruda será arrebatada pela efervescência cultural da Espanha de então. Uma mudança estética que tem que ver com o fim de sua solidão no Oriente, a superação das angústias religiosas, uma recuperação do gozo da vida e da solidariedade humanas. Neruda, nesta época da Espanha Republicana, pré-Guerra Civil, era um homem feliz, absorvido por seus trabalhos literários, entre eles a direção da revista Caballo Verde e pelas amizades espanholas, que o carregavam de um café para outro, como se ele fora um animal raro trazido de uma terra distante, mas que o envolviam com uma terna e profunda amizade. Veja como o próprio poeta fala desta época, em Confieso que he vivido:
"Toda esa época de antes de la guerra tiene para mí un recuerdo como de racimo cuya dulzura ya se va a desprender, tiene una luz como la del rayo verde cuando el sol cae en el horizonte marino y se despide con un destello inolvidable.".(Neruda, 2001, p. 75).
Entretanto, toda esta felicidade sucumbirá diante das primeiras noticias que simbolizam para o poeta, e para todo o povo espanhol, a origem de toda a grande tragédia da Guerra Civil: estala uma insurreição encabeçada por Franco; logo no início da Guerra, com apenas um mês de começada, Federico Garcia Lorca é assassinado, fuzilado em sua Granada que tanto amou (até hoje o corpo do grande poeta não foi encontrado), o poeta e dramaturgo, irmanado com Neruda através de uma amizade profunda e eterna. Esta execução bestial, fascista, irracional, de um dos maiores escritores do século XX, representa bem a insanidade da guerra feita pelos fascistas comandados por Franco contra a república eleita pelo voto democrático. Era a velha espanhola, ultraconservadora, realista, que não queria morrer, era o velho se levantando contra o novo e assassinando, nesta rebelião, toda uma geração pensante de uma nova Espanha que se erguia. A vitória de Franco levará a Espanha a um atraso de décadas que colocará o país como um dos últimos em termos de desenvolvimento na Europa (ainda hoje em dia, Espanha se recente dos anos de ditadura franquista que brecaram o seu desenvolvimento).
Nestes dois grandes acontecimentos trágicos interligados, o Assassinato de Federico Garcia Lorca e a Insurreição franquista, que dá início à Guerra Civil, está a raiz de España en Corazón, livro escrito por Pablo Neruda durante a Guerra Civil, livro de combate, impresso no front e proibido na Espanha Franquista, e que assinala a grande viragem, a grande metamorfose do jovem Neruda sem grandes compromissos sociais para o Neruda maduro, profundamente comprometido com as causas sociais. Este livro é um grito de dor e espanto. Neruda não fica neutro, desde o início da guerra, o Cônsul Ricardo Reyes, como é chamado na correspondência oficial da época se transforma no poeta Pablo Neruda e não pede permissão oficial para tomar partido a favor dos republicanos nesta guerra. Lorca foi fuzilado; Miguel Hernández, preso em combate, morre no cárcere; Antônio Machado, exilado, morre ao chegar à França. Os amigos de Neruda estão sendo presos, mortos em combate, ou mesmo assassinados, fuzilados. Em meio a esta situação brota a obra já citada, de tomada de posição política e mudança de temática, com total comprometimento social, Espanha no Coração:
(...)pero de cada niño muerto sale un fusil con ojos,/pero de cada crimen nacen balas/que os hallarán un día el sitio del corazón./(...)Preguntaréis: ¿por qué su poesía/no nos habla del sueño, de las hojas,/de los grandes volcanes de su país natal?/¡Venid a ver la sangre por las calles,/venid a ver la sangre por las calles!(Neruda, 2001, p 92).
Uma gota de sangue havia caído na poesia de Pablo Neruda e far-se-ia indelével, acompanhando o poeta para todo o sempre. O consulado do Chile em Madrid é fechado pelo governo de Arturo Alessandri, Ricardo Eliézer será afastado de suas funções diplomáticas por ter tomado partido, mas não desiste de lutar. Junto com outros escritores e intelectuais funda uma aliança de ajuda à causa republicana, em Paris. Realiza vários congressos de ajuda e recolhe dinheiro pelo mundo à fora. Viaja várias vezes para Espanha, correndo o risco de ser preso e se compromete como verdadeiro combatente, como “brigadista”, como eram chamados os voluntários republicanos na guerra contra Franco. Com a entrada da Luftware alemã, a aviação hitlerista do lado franquista, e de 50 mil soldados vindos de Marrocos, transportados por barcos fascistas para o estreito de Gilbratar, a guerra pende para o lado fascista e os republicanos, acuados, entre as tropas franquistas e o mar parecem destinados ao fuzilamento.
Neste meio tempo, as condições políticas mudam no Chile. A frente popular ganha as eleições, com o professor radical Pedro Aguirre Cerda à frente, como presidente da república e recoloca Neruda como responsável novamente pelas funções diplomáticas na Espanha. O Cônsul Ricardo Eliézer até hoje tem a gratidão eterna do povo espanhol. É ele que toma o problema do exílio nas mãos e consegue refúgio para mais de 40 mil espanhóis republicanos derrotados, cujo destino era a morte certa. Toda esta experiência traumática de dor, morte, perda, solidariedade, comprometimento, faz com que Neruda reveja suas posições diante do mundo. A Guerra Civil Espanhola será a ante-sala da Segunda Grande Guerra, nela os fascistas treinarão os métodos de combate usados para assolar a Europa, nela também os resistentes treinarão sua resistência nas brigadas voluntárias internacionais. O mundo depois se dividirá em duas durante a grande guerra, mas, durante a época do grande confronto, Neruda já terá tomado uma posição enérgica, terá se tornado um poeta militante e carregará isto não só para a sua vida prática, mas também para os seus textos, que incorporarão na sua temática a nova opção marxista que ele fará.
4.  MUDANÇA IDEOLÓGICA – NERUDA VIRA À ESQUERDA
4.1  O marxismo na vida do poeta
Neruda não se torna comunista ou marxista na Espanha, embora observe com simpatia, a movimentação do PSOE (na época o partido marxista), que lhe pareceu o partido mais organizado e com mais condições de comandar a resistência ao franquismo. Fala com algum desdém dos anarquistas, a quem classifica de desorganizados e sem comando, e caminha, então, para uma futura definição político e filosófica, o que mudará completamente sua vida e seus versos.
Pablo Neruda, como veremos, tornar-se-á, ao chegar ao Chile, depois da Guerra Civil Espanhola, marxista, militante do partido comunista, senador chileno e candidato à presidência da república. Só que esta virada não acontecerá de uma só vez. Seus amigos espanhóis não eram propriamente militantes, com exceção de Miguel Hernández, que foi preso ao combater e morreu na prisão. Ela se dará paulatinamente, conforme iam sucedendo os combates na Espanha e Neruda ia se envolvendo com os republicanos e, dentre estes, mostrando simpatia pelos comunistas. Isto o leva a ter uma imagem muito positiva do movimento comunista internacional, de tal forma que Neruda considerava os comunistas os únicos a estarem realmente em condições de se baterem com sucesso contra Franco. O que não aconteceu no entanto. Neruda em sua biografia joga a culpa nas outras organizações republicanas que, para ele, não estariam à altura do enfrentamento da guerra, muito descentralizadas, sem comando, sem uma ideologia firme. Era, sem ele saber, o passo definitivo para a sua futura decisão de se tornar não mais um simpatizante, mas um ativo membro do movimento comunista internacional.
Federico Garcia Lorca, ainda que tivesse uma concreta simpatia pelos republicanos, jamais militou em nenhuma organização política, será preso em casa e fuzilado sem julgamento, de maneira sumária, em uma praça de sua querida Granada. Antônio Machado, outro amigo do poeta chileno, também simpático aos republicanos, não toma parte na guerra, procura o exílio, caminhando ao largo dos combates, mas acaba morrendo doente, ao chegar à fronteira com a França. Neruda não terá nenhuma militância político-partidária na Espanha, seu trabalho de militância dar-se-á através de seus escritos, do livro Espanha no Coração, numa sociedade de defesa da República Espanhola, que coleta fundos no mundo inteiro para a guerra contra Franco. Depois, na parte final da guerra, de volta ao trabalho consular,  é ele que consegue o transporte e os vistos para exilar 40 mil combatentes espanhóis junto com suas famílias. Estes combatentes teriam perecido, não fosse a intervenção do Cônsul Ricardo Eliézer, já que praticamente derrotados, viam-se cercados entre o mar e as tropas de Franco. A ida para o Chile, que os acolherá como segunda pátria, os salva do pelotão de fuzilamento, em massa.
Biógrafos críticos de Neruda como José Manuel López de Abiada, nos mostram que Neruda, na época da guerra, publicou seu primeiro poema politicamente comprometido, na revista Azul, bancada pela Aliança de Intelectuais Antifascistas e dirigida por Rafael Alberti e María Teresa León. Por causa de sua opção republicana foi alijado do seu cargo diplomático e passou a residir na França, para defender publicamente a República. Neruda fundou e dirigiu, ao regressar ao Chile, a Aliança dos Intelectuais para a Defesa da Cultura. Sua poesia sofre uma mudança significativa de forma, tornara-se quase coloquial para ser instrumento de transmissão de suas idéias, de maneira que fosse clara para todos os homens do povo, ou seja, os trabalhadores e os despossuído (o proletariado, como fala Marx, aqueles que possuem única e tão somente a sua força de trabalho para sobreviver, como os metalúrgicos, os mineiros, os ferroviários). O cotidiano passa a ser tema de sua obra. Nesta fase se observa um grande humanismo, a sede de justiça, o descuidar de seus próprios sofrimentos e a solidariedade com os padecimentos alheios, principalmente o da classe trabalhadora, explorada. Mas Neruda ainda não é o comunista do PCC, ele diz em uma entrevista para o Morales Álvares, ao chegar ao Chile em 1937:
No Yo no soy comunista. Ni socialista. Ni nada. Soy, simplemente, escritor. Escritor libre, que ama la libertad con sencillez. Amo al pueblo. Pertenezco a él porque de él vengo. Por ello soy antifascista. Mi adhesión al pueblo no peca de ortodoxia ni de sometimiento. (Manuel, 1984, apud, Abiada, 1987, 232).
Nesta época, a sua amizade com comunistas assumidos como Alberti, González Tuñón, Serrano Plaja e Prados, terá uma paulatina e constante influência. Influência esta que nos permite afirmar que o poema “España pobre por culpa de los ricos” é um exemplo evidente da nova concepção marxista nascente: a violência, a grosseria da linguagem e as imprecações condicionam, em boa parte, os argumentos materialistas dialéticos: O materialismo dialético, uma filosofia que casa a dialética hegeliana, do movimento das contradições como ferramenta de evolução do progresso, com o materialismo antigo; tentando superar as limitações que o antigo materialismo possuía, de ver a matéria como algo mecânico e não explicar, por exemplo, filosoficamente o pensamento, as idéias. Assim o materialismo dialético tenta harmonizar o melhor de duas escolas de pensamento, a dialética, que vem da Grécia e que antes era a arte de argumentar, que vai se transformar em Hegel no movimento dos contrários, tese-antítese em permanente superação, mas que sempre esteve a serviço da escola idealista de filosofia; com a escola materialista de pensamento, a qual começa na Grécia, com Demócrito, com Leucipo, com Epicuro (de quem Marx era fã) e sua fixação na matéria, na realidade. Neruda adere completamente ao materialismo, ainda que sua poesia carregue sempre traços de metafísica pelo panteísmo de seus versos.
O materialismo dialético por sua vez leva ao materialismo histórico, que é uma concepção filosófica que leva a crer que as leis econômicas são as que regem a sociedade, e que o restante, o jurídico, o administrativo, a arte, tudo, em última instância se submete à maneira pela qual uma sociedade está organizada em sua forma e modo de produção. Que a exploração do homem pelo homem não é natural, mas dada social e historicamente na sociedade de classe, e que é possível então se fazer uma passagem para uma sociedade sem classes através de uma revolução da classe dos despossuídos (proletariado) contra a classe possuidora (burguesia). Esta revolução então levaria a uma nova forma de produção, socialismo, cujo objetivo final é uma sociedade sem classes, comunismo. Neruda aderiu a estas idéias e passou a defendê-las não só em seus discursos e escritos políticos, mas, algumas vezes em suas próprias poesias (Canto Geral).
Nos poemas de Terceira Residência na Terra, estes elementos já se encontram presentes no poema Espanha pobre por culpa dos ricos. É esta evolução, já presente na passagem de Neruda pela Espanha, que vai se cristalizar, quando o poeta regressar ao Chile e começar uma prolífica atividade de militante político, os seus livros e seus poemas farão parte ativa desta militância e Neruda será perseguido então não só por sua atividade como parlamentar, mas também por sua atividade artística. O Canto Geral, por exemplo, ficará, durante anos, proibido no Chile.
4.2  A estética social e socialista de Pablo Neruda
Viemos estudando todos os passos da evolução do poeta chileno Pablo Neruda. Desde os seus primeiros poemas juvenis, líricos e panteístas, até a sua fase místico-erótica-oriental, e chegamos ao momento de virada de seus textos e sua consciência, à dor profunda, à gota de sangue em suas páginas, como ele mesmo dizia. A convivência com a geração de 27, a influência da amizade e da poética de Garcia Lorca (ponto central desta monografia), o assassinato de Lorca e a morte de outros amigos de Neruda. A ferida aberta, misturada com a experiência poética levarão a um corte na obra do poeta. Há o Neruda pré-Espanha e o Neruda pós-Espanha. Já estudamos a vida e a obra do poeta anteriormente à sua estada em Madri, depois vimos o drama da guerra e a confluência poética com os jovens poetas republicanos, agora estamos desenvolvendo o Neruda marxista, já na sua volta ao Chile, para entendermos como e qual profundamente foi mudada a poesia nerudiana.
Neruda, logo após retornar para o Chile, depois de vivenciar e presenciar a Segunda Grande Guerra, na Europa, ver a devastação e o papel da resistência comunista ao nazi-fascismo, toma definitivamente partido. Filia-se ao PC chileno. Antes de se filiar, em 4 de março de 1944, Neruda é eleito senador chileno pelas províncias de Tarapacá e Antofagasta, filia-se ao Partido Comunista em junho, antes, em maio, havia recebido o prêmio nacional de literatura do Chile. Em setembro escreve alturas de Macchu Pichu, parte integrante do seu afamado Canto Geral. Este poema, é um dos mais interessantes do livro, já que nele podemos confrontar ambos os Nerudas, o velho e o novo, que convivem nele. Na natureza exuberante de Macchu Picchu o poeta sente que chegou ao ventre do planeta, se deixa seduzir pelo magnetismo da última cidadela inca. Então, o poema de resistência, em um livro de militância é escrito com exuberante panteísmo, lembrando os versos mais primaveris do Neruda que andava de locomotiva em Temuco.
Nesta época viaja por toda América Latina, não só como escritor, mas já como militante comunista, dando conferências e palestras, participa do comício de Luís Carlos Prestes em São Januário. Não é mais simplesmente o poeta Pablo Neruda que participa de atividades políticas, é agora o senador comunista, o militante Pablo Neruda que também é escritor. Uma tomada de posição radical que o poeta manterá até o fim da vida, militando no PC chileno até a morte, logo após a morte de Salvador Allende, o poeta morre de câncer na próstata, clamando, nos seus delírios, por seus companheiros assassinados pela ditadura recém construída de Augusto Pinochet.
As poesias nerudianas desta época, como Canto Geral, As Uvas e o Vinho, Barcarola, Versos do Capitão, terão uma temática social, por vezes mesmo socialista, motivos populares, elegias de heróis anônimos do povo, uma ligação afetiva com a classe operária, a louvação de todos os heróis e mártires latino-americanos (Canto Geral), e chegarão a uma simplificação estética que levara Neruda quase ao coloquial. Isto terá uma resposta negativa de parte da crítica, que acusa o poeta de não fazer arte, mas simplesmente discurso político. Neruda responde trabalhando, com mais afinco e, consegue, mesmo levando à frente uma árdua militância política, continuar a publicar novos poemas e livros. Canto Geral, foi escrito em meio a uma grande perseguição política, já que em 1948, o Partido Comunista Chileno foi proibido e Neruda teve sua prisão decretada. Na fuga do Chile, foi escondido por anônimos heróis do povo, ficando meses escondido na casa de um simples operário, em Valparaíso. Depois escapou pelos Andes, com auxílio de militantes do PC Chileno e traficantes. Terminou sua obra no exílio, publicando o seu livro mais famoso, Canto Geral, no México em 1950.  O livro terá uma recepção calorosa em toda a América e será vendido no Chile clandestinamente como um desafio à ditadura.
Devemos, todavia, notar que mesmo no livro de poemas mais famoso de Neruda, Canto Geral, o poeta mantém a exuberância das figuras de linguagem e, ainda que se declarasse materialista, por ser marxista, dentro desta mesma obra militante vemos de maneira bem clara o panteísmo vivo de Alturas de Macchu Pichu, ou dos poemas sobre a origem da América e um lirismo apaixonado quando fala das mulheres que lutaram pela liberdade da América. O Neruda marxista, materialista dialético, comunista, o “velho Neruda”, não vai jamais abrir realmente mão de todo o manancial lírico do jovem Neruda, os traços do Neruda inicial vão se manter como raízes da árvore frondosa que se tornou o Neruda maduro. Este é o grande encanto da poesia nerudiana, manter o frescor da juventude, das figuras de linguagem, da retórica inicial, não abrir mão da musicalidade e da beleza, mesmo quando fala de coisas duras, de agruras como a vida dos mineiros de carvão de Antofagasta.
Isto levará a que Neruda seja amado pelo povo chileno e visto como algo mais do que um simples escritor. Sua indicação ao prêmio nobel foi festejada por todos os chilenos, mesmo os reacionários, não era somente o poeta das mulheres, mas o poeta de uma nação, que cantava as alegrias e dores dela, a beleza de sua natureza, a esperança de um futuro mais justo, a denúncia dos crimes e das injustiças, um profeta que percorreu todo o Chile para fazer o levantamento de suas dores e que tentou, a sua maneira, diminuir o lamento dos trabalhadores. Veja este belo exemplo de sua dedicação ao povo chileno, extraído de Canto Geral:
Soy nada más que un poeta: os amo a todos,
ando errante por el mundo que amo:
en mi patria encarcelan mineros
y los soldados mandan a los jueces.
Pero yo amo hasta las raíces
de mi pequeño país frío.
Si tuviera que morir mil veces allí quiero morir:
si tuviera que nacer mil veces, allí quiero nacer,
(...)No quiero que vuelva la sangre
a empapar el pan, los frijoles,la música: quiero que venga conmigo el minero, la niña, el abogado, el marinero,
el fabricante de muñecas,
que entremos al cine y salgamos a beber el vino más rojo.
Yo no vengo a resolver nada.
Yo vine aquí para cantar y para que cantes conmigo. (Neruda, 2001, p. 345).
Ironicamente, Neruda que viu Espanha ser assassinada pelos franquistas, passará por um processo semelhante na sua terra natal. Em 1973, Salvador Allende seu amigo pessoal, presidente do Chile é assassinado no Palácio la Moneda, defendendo o mandato presidencial (a versão oficial fala que Allende se suicidou). Neruda já estava bastante debilitado e doente. Neruda já estava debilitado e doente, por esta razão havia renunciado a seu cargo de embaixador, designado fora antes pelo amigo Allende, em favor de sua também amiga, Gabriela Mistral. O golpe militar contra Allende agravou o estado de saúde de Neruda, que, no entanto, continuou a trabalhar escrevendo denúncias contra o golpe (que foram salvos da repressão de Pinochet pela esposa de Neruda, Matilde Urrutia). Com a morte dos amigos amados e esta atividade forçada sua doença piorou e, nos estertores, em delírio, clamava pelos amigos assassinados e dizia, los matam a todos! O funeral de Neruda foi a última manifestação livre no Chile do já generalíssimo Pinochet. A ditadura não ousou reprimir a manifestação popular de carinho pelo poeta que era o retrato do Chile, milhares de pessoas acompanharam o poeta que, como em seu desejo manifestado em seu poema, foi enterrado no amado solo chileno, onde mil vezes desejava morrer, onde mil vezes desejava nascer, eternamente chileno, tesouro nosso, todavia, de todos os que são povo, pueblo, latino-americano.
5.  Conclusão
Neste trabalho ficaram expostas, de forma cronológica, as várias fases do poeta Pablo Neruda. Do jovem tímido e metafísico, ao diplomata burocrata no Oriente, ao Cônsul em Madrid, futuro militante comunista, ficou traçada a linha de evolução do pensamento do escritor. Como partimos da afirmação de que a obra de um escritor é influenciada por sua vida, por suas experiências, sonhos, desejos, alegrias, frustrações, tramas, realizações, fizemos a co-relação entre as diversas experiências tidas por Neruda na vida e como elas se refletiram na sua obra. Mas não só isto, pois senão cairíamos num biografismo estreito. Mostramos também as influências poéticas, as escolas, os movimentos de vanguarda da época que vão influenciar a forma e a estética de Neruda.
Todavia, uma experiência é central na vida do Poeta. Esta experiência é sua estada na Espanha, da qual retiramos o poema: Espanha no Coração, que está colocado no anexo, e que vai demonstrar uma transformação radical, uma mudança tanto na estética quanto na temática do poeta, uma nova tomada de rumo. Ligado à Espanha não só pelas amizades; da qual Garcia Lorca fora preponderante, já que Neruda o considerava irmão de coração; mas pela arte, Neruda participará, como se espanhol fora, nos destinos literários da Geração de 27, chegando mesmo, ele que era chileno, a dirigir uma das mais importantes publicações modernistas da Espanha, junto com Rafael Alberti, a revista Caballo Verde.
Esta experiência estética de mesclar sua poesia latino-americana (que já havia sido influenciada por Gôngora e Quevedo, leituras juvenis do poeta) com a poesia mais revolucionária (tanto na forma, quanto no conteúdo) da Espanha, levará a que os textos nerudianos se aproximem muito, com relação à forma do poema, aos textos dos escritores modernistas espanhóis. Dentre estes escritores revolucionários espanhóis, o mais significativo e influente era, exatamente, o melhor amigo de Neruda, seu irmão de coração: Federico Garcia Lorca. Desta amizade, na vida real e literária, surgirá uma influência mútua. De Lorca, Neruda tomará a poética popular e de cunho social (ainda que a obra de Garcia Lorca não tivesse cunho socialista), mas também tomará o verso livre e branco, a musicalidade, o elogio às heróis anônimos do povo. Como o próprio Neruda falou, a guitarra de Andaluzia de Lorca continuará a tocar depois da morte do poeta espanhol, já que seus versos influenciarão toda a sua geração. Neruda, chileno de nascimento, é espanhol, todavia, em grande parte de sua poética. Lorca não influenciará somente a Neruda; a Geração de 27 da Espanha, com certeza ecoará no florescimento da nova poesia latino-americana, não por coincidência, que acontecerá quase concomitantemente a esta época.
Ficou explícito na monografia que o grande marco na vida do poeta, a estada na Espanha, a Geração de 27, a poesia e a amizade de Lorca, a Guerra Civil, são catalisadores de uma mudança que desembocará num Neruda Múltiplo. O Neruda dos Vinte Poemas não é um Neruda menor ou pior do que o Neruda de A Uva e o Vento, é somente um poeta mais completo, um poeta que agregou à face lírica uma outra face, social e política. Não há como deixar de se emocionar com a beleza estética na forma e no conteúdo dos versos dos Vinte Poemas, ainda que neles não fique caracterizada nenhuma militância social. Mas a face lírica, panteísta, interiorizada de Neruda não sumirá, somente trabalhará em conjunto, em textos como os do Canto Geral, já que o tempo inteiro Neruda cantará a natureza com riqueza de adjetivos e com uma profundidade metafísica.
Ao contrário do que diziam alguns críticos, a nova face, social e socialista, de Neruda, herdada da Guerra Civil Espanhola, não restringiu a visão do poeta; ele não se tornou restrito ou apenas utilitarista, conseguiu manter o capricho na forma. Continuou a escrever sobre a mulher, o desejo, a natureza, constantes na sua temática e ainda acrescentou outras faces, numa poesia realmente de vanguarda, em odes que foram capazes de louvar até a cebola, uma das paixões do poeta andino. Pablo Neruda, vimos pela monografia aqui apresentada, se transforma, se completa, amadurece com a Espanha e com a influência de Lorca e da Geração de 27, tornando-se o poeta latino-americano mais influente do século XX, trazendo sempre, em sua natureza chilena, Espanha no coração.
6.  Referência Bibliográfica
Lópes de Abieda, José Manuel; La experiencia madrileña de Neruda: su evolución ideológica, el cambio de estética y su compromiso frente a España, Instituto Cervantes, anales de literatura española, publicaciones periódicas, nº 5, 1986-1987, 215 pp.
Lorca, Federico Garcia; Romancero gitano in Obra Poética Completa; apresentação Ático Villas-Boas da Mota; tradução William Angel de Mello; edição bilíngüe;  3ª edição – São Paulo; Martins Fontes, 1999, 637 pp.
Neruda, Pablo; Para nascer nasci; Tradução de Rolando Roque da Silva; 8ª edição; Rio de Janeiro; Bertrand Brasil; 1996, 376 pp.
______________; Cadenos de temuco; texto original e tradução de Thiago de Melloa, edição e prólogo, Victor Farias, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1998, 139 p.
______________; Vinte poemas de amor e uma canção desesperada; texto integral e tradução de Domingos Carvalho da Silva; 23ª edição, Rio de Janeiro; José Olímpio Editora, 1999, 135 pp.
_______________; Os versos do capitão; texto integral e tradução  de Thiago de Mello, 4ª edição; Bertrand Brasil; Rio de Janeiro, 2000, 127 pp.
________________; Memorial de isla negra; Editorial Oveja Negra; 1982, Bogotá, 153 p.
________________; Residência na terra; tradução de Paulo Mendes Campos; edição bilíngüe; L&PM Pocket; Porto Alegre, 1998, 185 pp.
_________________ Barcarola; Tradução de Olga Savary; L&PM Pocket; Porto Alegre; setembro 2004, 210 pp.
_________________; Confieso que he vivido, Pehuén Editores, Santiago – Chile, primeira edición, julio de 2005, 415 pp.
__________________; Canto Geral, Bertrand Editores Brasil, Rio de Janeiro, 200, 584 pp.
Rovira, José Carlos; Para leer a Pablo Neruda, Madrid, Palas Atenea, 1991, 85 pp.
Yurkievich, Saúl; in A través de la Trama, in Muchnik Editores, Santiago, 1984, 115 pp.
7.  ANEXOS
Trecho de Rovira, José Carlos; Para leer a Pablo Neruda, Madrid, Palas Atenea, 1991, p.36.
En el principio fue la soledad de Temuco, la estación de ferrocarril donde trabajaba su padre, la costa cercana de puerto Saavedra, la naturaleza deshabitada, la flor del copihue, el ruido de los trenes o su silencio, el rumor del mar o todos los sonidos de la naturaleza, agolpados a las palabras que se van aprendiendo para llamar a cada cosa por su nombre.  (...) La infancia en Temuco es un aprendizaje de soledad y naturaleza; (...) En Confieso que he vivido narró el poeta ampliamente todas las sorpresas de aquella infancia: la naturaleza que le provoca «una especie de embriaguez», los pájaros y su canto, los insectos, o los juegos infantiles. (...) La narración de infancia tiene un bellísimo momento en su primera llegada al mar, en un vapor a lo largo del río Imperial: (....)«Cuando estuve por primera vez frente al océano quedé sobrecogido. Allí entre dos grandes cerros (el Huilque y el Maule) se desarrollaba la furia del gran mar. No sólo eran las inmensas olas nevadas que se levantaban a muchos metros sobre nuestras cabezas, sino un estruendo de corazón colosal la palpitación del universo».
Pablo Neruda es un poeta que ha reflexionado ampliamente sobre su poesía y sobre su biografía, hasta el punto de resultar imprescindibles sus textos en prosa para adentrarnos en su mundo poético. (...) De los textos anteriores surge la imagen de un adolescente débil, ensimismado, solitario, en continua sorpresa ante diferentes naturalezas que se sitúan ante sus ojos. La prehistoria poética de Neruda se desarrolla además en clave de soledad, tristeza, amargura, dolor, desesperación, etc., como contraseñas adolescentes de mundo poético que se gesta también en re ación a un referente continuo de la naturaleza (mar, lluvia, insectos, etc.).
Entre 1920 y 1923 se genera Crepusculario, cuyas resonancias, desde el título, al modernismo y al decadentismo europeo son evidentes. El tiempo biográfico de Crepusculario (Santiago, ediciones Claridad, 1923) coincide con el final de su estancia en Temuco y su traslado a Santiago para seguir estudios de francés en el Instituto Pedagógico. Se trata de una obra que está plenamente integrada en un mundo adolescente de sensaciones que quieren dar cuenta del propio vivir (...). En 1923, Neruda escribe El hondero entusiasta, que se publicará sin embargo diez años más tarde. El poeta narró las circunstancias de creación de la obra años después: «En 1923, tuve una curiosa experiencia. Había vuelto tarde a mi casa en Temuco. Era más de medianoche. Antes de acostarme, abrí las ventanas de mi cuarto. El cielo me deslumbró. Era una multitud pululante de estrellas. Vivía todo el cielo. La noche estaba recién lavada, y las estrellas antárticas se desplegaban sobre mi cabeza. Me agarró una embriaguez de estrellas, sentí un golpe celeste. Como poseído, corrí a mi mesa, y apenas tuve tiempo de escribir, como si recibiera un dictado. Al día siguiente, leí, lleno de gozo, mi poema nocturno. Es el primero de El hondero entusiasta... Me movía en una nueva forma como nadando en mis verdaderas aguas. Estaba enamorado y a El hondero... siguieron torrentes y ríos de versos amorosos...». En 1925 aparece en la Editorial Nascimento Tentativa de hombre infinito, que es la obra que cierra este conjunto de incitaciones poéticas que conforman la prehistoria nerudiana. En Tentativa aparece claramente diseñado un mundo propio y profundamente original que, en alguna medida, cumple el papel de génesis del lenguaje de las Residencias. La obra es un conjunto de fragmentos mediante los que el poeta nos entrega una parcela de su mundo de la infancia, de su naturaleza, junto a la conciencia de su enfrentamiento con el espacio y el tiempo.
La construcción poética inicial, con el desarrollo de los primeros mitos poéticos, se realiza al tiempo que la escritura del amor juvenil, intensificada en el momento esencial de su estancia en Santiago. En 1924, en junio, la editorial Nascimento de Santiago publica los Veinte poemas de amor y una canción desesperada, libro escrito a lo largo de 1923 en su mayor parte, del que habían aparecido ya algunos poemas en la revista Claridad. Los Veinte poemas significan, sobre todo, un ejemplo para entender la fortuna literaria de Neruda, su conexión en 1924 con una sensibilidad adolescente y posromántica, una relación con el lector que el tiempo se habría de encargar de acrecentar.”
Trecho de Saúl Yurkievich, in A través de la Trama, in Muchnik Editores, Santiago, 1984, p.87.
Residencia en la tierra integra, junto con Trilce de César Vallejo y Altazor de Vicente Huidobro, la tríada de libros fundamentales de la primera vanguardia literaria en Hispanoamérica. Posee todos los atributos que caracterizan a la ruptura vanguardista. Surge íntimamente ligado a la noción de crisis generalizada y, promueve un corte radical con el pasado. Participa en la renovación profunda de las concepciones, las conductas y las realizaciones artísticas. Cambio de percepto y cambio de precepto van a la par. Neruda acomete una revolución instrumental porque promueve una revolución mental. Su arte impugna la imagen tradicional del mundo, contraviene sobre todo la altivez teocéntrica y la vanidad antropocéntrica del humanismo idealista; e impugna el mundo de la imagen: la mímesis realista, la visión perspectivista, la representación progresiva y cohesiva, la figuración simétrico-extensiva, la composición concertante, la expresión estilizada, el arte de la totalidad armónica
(...) Residencia en la tierra se ocupa de una mudanza íntima, de un cambio de mentalidad que conlleva una crisis raigal de valores. Refleja ese estallido de los marcos familiares, de vida y de referencia que trastorna la estabilidad del orden preindustrial (comarcano, aldeano, rural, artesanal), que trastoca el mundo solariego de las relaciones personalizadas, las solidaridades seculares de la comunidad local sometidas ahora al embate de un proceso que masifica y uniformiza aceleradamente. Neruda no adhiere a la modernolatría futurista, no participa de la vanguardia eufórica (la del primer Huidobro, la de los ultraístas), aquella que alaba las conquistas del mundo moderno, la que asume los imperativos del programa tecnológico. (...) Aunque ella aparezca a veces, en la literalidad, se manifieste en la ambientación de ciertos poemas donde tierra baldía equivale a contexto urbano, no vale la pena inventariar en Neruda los signos de contemporaneidad explícita. Su modernidad, como la de Vallejo, está interiorizada. Hay que buscarla en su tumor de conciencia, en su representación de la vida fraccionada, del hombre escindido que sufre un doloroso divorcio entre mente y mundo. Su modernidad se detecta en las relaciones dislocadas por una angustiosa inadaptación a la precariedad, a la insignificancia, a la intrascendencia de una vida alineada, acechada por las incertidumbres fundamentales (origen, condición, destino, sentido).
Desde el comienzo, Residencia en la tierra dice acerca de la sumergida lentitud, de lo informe, de lo confuso pesando, haciéndose polvo, del rodeo constante, del vasto desorden, de naufragio en el vacío. Dice la astenia, la duración átona, la pura espectativa de una existencia expectante sólo con respecto a su propio existir, sumida por la lasitud en días de débil tejido -acaecer que no se entrama, que no se tensa-, entre materias desvencijadas. Esta existencia está desnuda, fuera del orbe laboral, de toda motivación utilitaria, sin razón suficiente, abierta a su circunstancia solitaria, a un acontecer sin conexión, sin cauce, no encausado, no conduscente.
Trecho do livro, Terceira Residência, de Pablo Neruda, p.57.
España en el Corazón
“España en el corazón
Explico algunas cosas
Preguntaréis: ¿Y dónde están las lilas?
¿Y la metafísica cubierta de amapolas?
¿Y la lluvia que a menudo golpeaba
sus palabras llenándolas
de agujeros y pájaros?
Os voy a contar todo lo que me pasa.
Yo vivía en un barrio de Madrid, con campanas,
con relojes, con árboles.
Desde allí se veía el rostro seco de Castilla
como un océano de cuero.
Mi casa era llamada la casa de las flores,
porque por todas partes estallaban geranios:
era una bella casa con perros y chiquillos.
Raúl, ¿te acuerdas?
¿Te acuerdas, Rafael?
Federico, ¿te acuerdas debajo de la tierra,
te acuerdas de mi casa con balcones en donde
la luz de junio ahogaba flores en tu boca?
¡Hermano, hermano!
Todo eran grandes voces, sal de mercaderías,
aglomeraciones de pan palpitante,
mercados de mi barrio de Argüelles con su estatua
como un tintero pálido entre las merluzas:
el aceite llegaba a las cucharas,
un profundo latido de pies y manos llenaba las calles,
metros, litros, esencia aguda de la vida,
pescados hacinados,
contextura de techos con sol frío
en el cual la flecha se fatiga,
delirante marfil fino de las patatas,
tomates repetidos hasta el mar.
Y una mañana todo estaba ardiendo
y una mañana las hogueras
salían de la tierra devorando seres,
y desde entonces fuego,
pólvora desde entonces,
y desde entonces sangre.
Bandidos con aviones y con moros,
bandidos con sortijas y duquesas,
bandidos con frailes negros bendiciendo
venían por el cielo a matar niños,
y por las calles la sangre de los niños
corría simplemente, como sangre de niños.
¡Chacales que el chacal rechazaría,
piedras que el cardo seco mordería escupiendo,
víboras que las víboras odiarían!
¡Frente a vosotros he visto la sangre
de España levantarse para ahogaros en una sola ola
de orgullo y de cuchillos!
Generales traidores:
mirad mi casa muerta,
mirad España rota:
pero de cada casa muerta sale metal ardiendo en vez de flores,
pero de cada hueco de España sale España,
pero de cada niño muerto sale un fusil con ojos,
pero de cada crimen nacen balas
que os hallarán un día el sitio del corazón.”
Preguntaréis: ¿por qué su poesía no nos habla del sueño, de las hojas,
de los grandes volcanes de su país natal?
¡Venid a ver la sangre por las calles,
venid a ver la sangre por las calles,
venid a ver la sangre por las calles!