sexta-feira, 28 de julho de 2017

Balbúrdia das letras: O ódio ao Flamengo se assemelha muito ao ódio cont...

Balbúrdia das letras: O ódio ao Flamengo se assemelha muito ao ódio cont...: O ódio ao Flamengo se assemelha muito ao ódio contra Lula. Roberto Ponciano Tenho certeza que este artigo despertará dois ódios. O d...
O ódio ao Flamengo se assemelha muito ao ódio contra Lula.
Roberto Ponciano

Tenho certeza que este artigo despertará dois ódios. O do povo da esquerda, anti-flamenguista, que efetivamente, não gostará de ver seu ódio irracional ao Flamengo comparado aos ódios da direita. De outro lado, aos direitosos flamenguistas, que não gostaram de ver o Flamengo ser comparado a Lula. Se eu tivesse medo a ódios e amores não seria comunista, me declararia uma besta quadrada “apolítica”. Antes de entrar na questão do Flamengo é necessário rebater um truismo bem chatinho. A de que o futebol é alienação é o ópio do povo. 99% das pessoas que usam a frase de Marx “a religião é o ópio do povo” nunca leram “Crítica da filosofia do direito de Hegel”, repetem esta frase para tudo, como se efetivamente a política socialista fosse criar um país sem futebol, sem carnaval, sem arte, sem alegria. Creem que tudo que não seja política é “alienação” (outro conceito que não dominam), e querem um socialismo muito esquisito, sem futebol, sem samba, sem carnaval, sem arte, sem alegria. Não me confundo com estes é esta defesa é tão tosca, que efetivamente não é necessário um longo texto para rebater este tipo de pensamento. É o povo que confunde os times de futebol com as elites que os dirigem, sem identificar estes clubes como entidades de paixão popular, de movimento de torcedores sem nenhuma outra intenção que não seja a colocação da libido numa paixão não sexual, assim como confundem as escolas de samba, instituições comunitárias, com os patronos contraventores. Sem entrar nesta polêmica, vou direto ao assunto.
O ódio ao Flamengo se nutre da mesma raiz do ódio a Lula. É o ódio ao clube mais popular, mestiço, negro do país. A prova disto é que as outras torcidas, todas, quando querem sacanear a torcida do Flamengo cantam, “favela, favela, silêncio na favela”. Ou se referem a nós como urubus. O urubu é uma referência à maioria negra da torcida do Flamengo, torcida é claro, de todos os segmentos sociais, mas efetivamente a mais negra e com maior número de favelados também. Assumimos o urubu, Henfil, socialista convicto, tornou o xingamento, nosso mascote. Temos orgulho de sermos negros e favelados. Assumimos a favela, cantamos nas vitórias, “favela, favela ,festa na favela”. Este ódio de direita e de elite ao Flamengo, tem sido “racionalizado” por alguns setores da esquerda tentando mostrar que na verdade o Flamengo seria o time das elites, ou da Globo.
Por mais chata que seja a tarefa, é importante rebater isto, porque uma mentira, dita mil vezes, acaba por se tornar uma verdade “Goebbels’.
O Flamengo, com certeza, não foi fundado por nenhum global, até porque a fundação do Flamengo, em 1895, é muito anterior à da Globo. E não, também não foi fundado por “rapazes da elite”. O bairro do Flamengo, em 1895, não era um bairro da elite carioca, na verdade, historicamente, a elite tinha se fixado no Centro e em São Cristóvão, e começava timidamente uma migração para a Zona Sul. O Flamengo era um bairro muito mais de classe média que da elite carioca e fluminense. A história da fundação esta ligada a rapazes boêmios que se reuniram e decidiram comprar um barco para rivalizar com os rapazes do Botafogo, o barco de terceira mão, foi reformado e naufragou. Bem, as péssimas condições da primeira embarcação do Flamengo bastam por si para contraditar qualquer ideia de clube “fundado pela elite”. É bom lembrar que o remo era o esporte popular, e não o futebol. O futebol era um esporte de elite, assim como o cricket, as regatas é que atraíam multidões para a Baía de Guanabara. A popularidade do Flamengo vem do remo, antes mesmo do futebol, que só vai se popularizar bem depois. Então, a ideia de um clube de elite, desde a sua fundação, é fácil de ser descartada.
Já o futebol no Flamengo acontecer a partir de uma dissidência do já elitista Fluminense. Boa parte do time campeão briga com a direção e sai para o Flamengo, para fundar o departamento de futebol, que já nasce forte, tanto que disputa o primeiro campeonato carioca em 1912 e já é bicampeão em 1914 e 1915. O futebol do Flamengo era elitista? Sim, e no Fluminense, no América, no Botafogo. Os único times de futebol populares da época eram o Bangu e o extinto Andaraí, o Bangu já tinha jogadores negros da fábrica de tecidos. O futebol era um esporte praticado por brancos, filhos da elite, de forma amadora. Ele se populariza e passa a ser praticado pelo povo negro e mestiço brasileiro só depois.
Daí vem o segundo truísmo, que algumas pessoas da esquerda antropomorfizando algo que não aconteceu transformam em truísmo. Os racistas e elitistas Fluminense, Botafogo e Flamengo teriam lutado contra o democrático e operário Vasco da Gama. Esta visão romântica da história do futebol no Rio de Janeiro vem muito dos artigos do excelente Mário Filho, o irmão do Nélson Rodrigues, que no seu livro “o negro no futebol brasileiro”, romantizou a questão, que está bem longe de ter sido uma luta contra o racismo. Na verdade o primeiro clube a escalar negros no Brasil foi a Ponte Preta, aliás, desde a sua fundação, bem antes de os times do Rio pensarem em escalar um jogador negro. No Rio, o primeiro clube a escalar um jogador negro foi o Bangu, ainda em 1905, com Carnegal. Botafogo Futebol Clube (extinto), o fez em 1908, o Fluminense, fez em 1915 e o Flamengo em 1917. O Vasco só cria um departamento de futebol em 1915, toma no primeiro jogo de 10 x 1 do Palestino e só disputará a primeira partida na primeira divisão em 1923 (não havia ascenso e descenso, primeira e segunda divisão eram organizadas de acordo com o regulamento da época, de acordo inclusive com a força dos clubes). Assim, até 1922 o Vasco não tinha uma estrutura no futebol capaz de rivalizar com Botafogo, Fluminense e Flamengo, a solução?
“Mas onde o Vasco entra na história? O clube originário da colônia portuguesa já disputava regatas desde 1898. Este sim, era o verdadeiro esporte das “multidões” aqui no Rio de Janeiro em fins do Século XIX/início do XX. Em 1915, resolveu também criar um time de futebol. As primeiras participações, com a equipe integrada por membros da colônia, tiveram resultados pouco animadores: derrota de 10 x 1 para o Paladino, no primeiro jogo.
Os portugueses que patrocinavam o time viam entre os seus empregados negros, nos muitos armazéns de secos e molhados, vários com bastante habilidade desenvolvida no trato com a bola.  Os lusos pagavam um “por fora” aos seus empregados negros para disputarem os jogos com a camisa do clube. Até os deixavam treinar, aliviando a jornada de trabalho deles. Isso por volta de 1920.[1]
Bem, resumindo, o mito da democracia racial do Vasco é apenas um mito. O Vasco era um clube elitista como os demais, o que o Vasco fez foi escalar um time com pé-de-obra negro, e depois lutar para garantir que seu ótimo time fosse aceito pelos demais. O que não deixa de ser progressista, mas que entra muito mais na história da luta do profissionalismo contra o amadorismo do que na luta contra o racismo no futebol. Basta procurar nos documentos da época, e se vê que não há nenhum manifesto contra o racismo, que, aliás, não era uma luta que os clubes faziam na época. Efetivamente pode se relacionar a luta pelo profissionalismo à luta pela emancipação do negro, mas dizer que efetivamente foi esta luta é uma história contada a posteriori com ares de verdade.
Então, afastados os mitos de que o Flamengo foi criado por uma elite, ou que o Flamengo era um clube de elite que lutava contra o democrático e progressista Vasco da Gama, podemos avançar um pouco mais na história para tentar entender porque o Flamengo carrega tanto ódio. Paixão não se explica, difícil entender como, dos quatro grandes da cidade, foi o Flamengo que acabou sendo o preferido. Não pelos títulos, o Fluminense os tinha em maior número, o Botafogo talvez tivesse os mais marcantes. O fato é que foi se fixando a mítica de que o Flamengo era um time popular e crescendo a torcida do Flamengo exatamente, em maior número nas camadas mais pobres da população. Aí há um fenômeno muito interessante, de retroalimentação. O preconceito por o Flamengo ser um time de pobres, de negros, retroalimentou a torcida do Flamengo, fazendo que muitos pobres, negros, favelados, preferissem suas cores.
Outros mitos são relacionados ao Flamengo. Tirei um tempo para tentar rebater um a um. Um diz que “o Flamengo foi o time da ditadura militar”. Já escutei várias pessoas de esquerda dizerem isto. Ao contrário do Real Madrid, que até um estádio (o Santiago Bernabeu) ganhou de Franco, o Flamengo nunca foi beneficiado por nenhum governo militar. O fato de ditadores de plantão assistirem jogos do Flamengo, para tentarem se mostrar populares, prova tão pouco quando o fato de José Serra assistir a um jogo do Palmeiras, ou Lula assistir a um jogo do Corinthians. O Flamengo fez um jogo, em 1979, pelas vítimas das enchentes no Maracanã, contra o Atlético MG, com a renda revertida para estas vítimas, com a presença do General de plantão. Isto prova… nada, absolutamente nada. Nenhum benefício, nem um acre de terra, nenhum financiamento, nenhuma facilidade, nenhum envolvimento. Aliás, a FAF, a Frente Ampla pelo Flamengo estava permeada de comunistas e socialistas, como Henfil e o Flamengo lançou a Fla Anistia que foi recepcionar vários exilados nos aeroportos.
Por último a mais tola de todas as afirmações. “O Flamengo é o time da Globo” porque Roberto Marinho era flamenguista. Dizer isto é dizer a mesma bobagem que alguns idiotas da direita dizem, “o Corinthians ganhou a arena de presente do Lula”. As duas patetices são do mesmo soez. Sim, ao que me consta, não só Roberto Marinho, como seus filhos são flamenguista, e isto não significa… nada! O Flamengo nunca teve uma vantagem indevida ou foi beneficiado pela Globo. É verdade, a FAF tinha um diretor da Globo, Walter Clarck e o Flamengo recebeu nenhum centavo por isto. Não foi uma relação como é da CREFISA com o Palmeiras, na qual a empresa patrocina e injeta dinheiro no clube por causa da preferência clubística dos seus donos, o Flamengo NUNCA RECEBEU UM CENTAVO DA GLOBO.
Apressadamente, alguns vão dizer que sou maluco e mentiroso. Nem uma coisa e nem outra, direito de transmissão é pagamento pela imagem do Flamengo. O Flamengo recebe da Globo por direitos que são seus. Aliás, o Flamengo é duplamente pioneiro nisto, inimigo dos poderes estabelecidos desde sempre, isto inclui CBD e CBF, o Flamengo foi o primeiro clube do Brasil a enfrentar a Globo e exigir que fossem pagos os direitos de transmissão dos jogos. [2]
“O esquema em vigor no final dos anos 1970 era o seguinte. A antiga TV Educativa, que era a emissora oficial, tinha o direito exclusivo de captar as imagens dos jogos e enviar o sinal para as emissoras privadas. Ou seja, a Globo, que comercializava aquele sinal gratuito da TV Educativa, ganhava dinheiro, e os clubes não recebiam nada. (…) Quando assumi a presidência do Flamengo, a participação dos clubes e dos jogadores já era regulamentada, embora de forma talvez incipiente, pela Lei 5.988, de 1973, que introduziu o conceito de direito de arena no Brasil. Segundo o texto do dispositivo legal, pertencia às entidades de prática desportiva o direito de negociar, autorizar e proibir a fixação, a transmissão de imagem de espetáculo ou eventos desportivos que participem. Acontecia, porém, que essa lei nunca havia sido cumprida.
Desde o dia 1o de novembro, tentávamos negociar com a Globo uma fórmula que beneficiasse tanto o clube quanto a emissora. O fato é que, no final das contas, fracassamos na nossa negociação, não conseguimos comercializar a partida. Aí, só nos restava recorrer à justiça para fazer cumprir a lei. E foi o que fizemos. (…) Nossa reivindicação era a mais justa do mundo, e exatamente por isso não tivemos dificuldade de obter uma decisão favorável à nossa causa. Segundo o despacho do juiz, já que o produto não tinha sido comercializado, não podia ser transmitido. E assim nos concedeu o interdito proibitório que tínhamos solicitado, vetando o ingresso do equipamento da TV Educativa no Maracanã.
Além dos dirigentes do clube, oficiais de justiça e policiais se postavam em torno do estádio para impedir a entrada dos funcionários da TV Educativa com seu maquinário. E a lei foi cumprida, eles não entraram mesmo! Reconheço que acabamos com a festa televisiva. Frustramos milhões de telespectadores em todo o país que queriam assistir ao Fla-Flu. E a imprensa também. Jornalistas brigando, me xingando, uma confusão danada. Mas ao mesmo tempo tínhamos consciência da importância daquele gesto histórico para os esportes no Brasil.
O que posso dizer é que a terra tremeu naquele dia. Primeiro, porque estávamos mexendo com os donos do poder pois a TV Educativa era do governo. E depois, com o dono da TV Globo, que àquela altura era tão poderoso quanto os militares que mandavam no país.
A contrário sensu do que se diz, o Flamengo, que foi oposição à CBD, comprou a briga com a Globo e ganhou, o que inaugurou a era de recebimento de direitos de arena pelos times no Brasil. Então, o que a Rede Globo vem pagando ao Flamengo, e aos outros clubes desde então, vem de uma luta liderada pelo Flamengo e não é “dinheiro da Globo pago ao Flamengo”, mas uma pequena quota-parte do que a empresa fatura ao vender a imagem que é do clube. Portanto, fora isto, não há nenhum “beneficiamento” do Flamengo pela Globo, até porque, o Flamengo nunca foi beneficiado em campo por nenhum esquema da Globo, como o vitimismo, junto com o ódio de alguns teima em inventar. O Flamengo lutou contra a Globo e a CBD em 1977; O Flamengo lutou contra a CBF em 1987 e inaugurou a era da modernidade no futebol brasileiro, com a fundação do Clube dos 13. O Flamengo pagou caro por esta ousadia. Enquanto Ricardo Teixeira inventou e dividiu títulos de papel entre clubes por campeonatos brasileiros que nunca forma disputados, o Flamengo é até hoje punido pela ousadia em 1987. No contrato, em que os próprios clubes geriram o campeonato brasileiro, todos os clubes foram beneficiados e receberam direitos de imagem, patrocínio e até passagem aérea. Aliás, todos não, o Flamengo não foi patrocinado pela Coca-Cola, patrocinadora da Copa União pela Globo, que bancou todos os times, menos o Flamengo, porque este tinha contrato próprio. De verdade, em 1987, todos os times foram bancados pela Globo, menos o Flamengo, que só recebeu direitos de imagem.
Estranho time da Globo que nunca recebeu patrocínio da emissora!
Um último argumento sobra, talvez contra o Flamengo, para provar que ele “é o time da Globo”, já que, ser o time das elites, ou o time da ditadura militar, já conseguimos provar que é uma ilação sem provas. O que alguns dizem, para “provar” que o Flamengo é beneficiado pela globo é “O Flamengo e o Corinthians recebem muito mais do que os outros clubes e são contra a igualdade das cotas”. Bem, comecemos pelo final. Os outros clubes não querem igualdade de cotas, querem receber como o Flamengo recebe. O Vasco não luta para que Vasco e Atlético Goianiense recebam uma cota como a do Flamengo, luta para receber uma cota igual a do Flamengo, e quer que o Atlético Goianiense se lasque. Esta é a grande verdade. A questão é bem outra, o direito de imagem, tanto na TV aberta, quanto na fechada está ligada à audiência. Partindo deste pressuposto o Flamengo recebe muito menos do que vale. A atual equação para pagamento de cotas é tríplice, ligada a um índice técnico de colocação no torneio, mais uma cota em faixas de ibope, mais uma cota fixa. Sim, o Flamengo recebe a mais, não o Flamengo não recebe muito a mais com relação ao que gera de receitas para a TV. Só a título de comparação, o jogo Flamengo x Fluminense na decisão do carioca de 2017 teve um Ibope de 60% das televisões ligadas no Rio de Janeiro, o de Vasco e Botafogo, em 2016, não chegou a 35%. Os valores que o Flamengo recebe a mais são muito menores do que o que valem pela exposição que a marca provoca. Fingir não entender isto é apenas se infantilizar para continuar a gritar “o Flamengo é o time da Globo”, e pensar conseguir convencer alguém. E muito de ódio de classe, o mesmo que afeta Lula, por o Flamengo ser um time popular, negro e favelado, disfarçado num discurso pseudo-esquerdista que muge “o futebol é o ópio do povo” ou a bobagem de “o Flamengo é o time da Globo”. Dois mitos, fáceis de serem descartados.




[1]     http://www.fimdejogo.com.br/blog/2013/06/25/ai-e-outra-historia-o-vasco-escalou-o-primeirojogador-negro/
[2]     http://www.mundorubronegro.com/flamengo/marcio-braga-tv

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Ideologia em Gramsci através de Marx.
Roberto Ponciano

Antônio Gramsci é muito citado nas discussões de hegemonia, bloco histórico, Estado, luta de classes. Mas, raramente, uma das parres mais fecundas do seu trabalho, a discussão sobre ideologia, é citada, discutida, ou ensinada. No livro inicialmente publicado no Brasil como “Concepção dialética da história”, e hoje encontrado no volume 1, dos cadernos do Cárcere, como “Introdução ao estudo da filosofia”, Gramsci trabalha questões metodológicas muito importantes para o estudo de Marx. Entre estas questões, destacamos, a preocupação de não tentar popularizar o marxismo “vulgarizando-o”, ou seja, rebaixando-o de uma concepção dialética do mundo para uma concepção mecanicista (podemos comparar esta preocupação ao alerta que Lênin fazia de que os operários não eram crianças, e que não devíamos rebaixar a dialética para fazê-la compreensível). Pode-se dizer que ambos tem uma concepção semelhante, a de elevar o nível cultural das massas, em lugar de rebaixar o marxismo para o fazer “inteligível”. Nosso objetivo neste material não é fazer uma resenha do livro, antes apenas alguns apontamentos didáticos para uma abordagem inicial do que seria “ideologia” para um marxista. A primeira coisa a ressaltar é que o homem, para os marxistas, é um processo imanentista. Só que, ao contrário do imanentismo cristão, que faz derivar a humanidade de uma sacralidade do homem, e para isto faz mister uma re-ligação, uma re-ligião para romper com a “alienação” (sim, pasmem, o termo “alienação”, a nós tão caro, tem início na religião),
Marx, e todos os marxistas, descobre a humanidade na práxis, no trabalho:1
¨O pressuposto de toda história humana é, naturalmente, a existência de indivíduos humanos vivos. ¨o primeiro fato a considerar é, pois, a organização corporal desses indivíduos e, por meio desta, sua relação dada com o restante da natureza. Naturalmente não podemos abordar aqui, nem a constituição física dos homens, nem as condições naturais, geológicas, orohidrográficas, climáticas e outras condições já encontradas pelos homens. Toda historiografia deve partir destes fundamentos naturais e de sua modificação pela ação dos homens no decorrer da história. Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou pelo que se queira. Mas eles mesmos começam a se distinguir dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo que é condicionado pela sua organização corporal. Ao produzir seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material. O modo pelos quais os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da própria constituição dos meios de vida já encontrados e que eles tem de reproduzir. Esse modo de 1 Não inseri, de propósito, a norma da ABNT na formatação das citações, para facilitar a leitura em aula. Assim, para destacar que é citação, coloquei as citações em itálico. Peço desculpas por esta libertinagem. produção não deve ser considerado meramente sob o aspecto de ser a reprodução da existência física dos indivíduos. Ele é muito mais, uma forma determinada de sua atividade, uma forma determinada de exteriorizar sua vida, um determinado modo de vida desses indivíduos. Tal como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, pois, com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais da sua produção. (Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã, pp. 87-88, Boitempo, São Paulo, 2007, tradução de Ruben Enderle, Nélson Scheneider e Luciano Cavini Martorano). Gramsci compreende esta relação intrínseca da práxis. A prática cega inexiste, todo trabalho é elaborado por uma “prévia-ideação”. Como diria Marx, o fazer da mais zelosa abelha não tem o intuito racional, abstrato do trabalho humano do mais bruto artesão. Assim, a consciência também é um processo social derivado da práxis, ela mesmo é práxis social (não um mero reflexo passivo). Assim, todo trabalho, por mais braçal que seja, tem sempre um quantum de abstração e ideação. A separação entre trabalho material e trabalho intelectual, tão desenvolvida no capitalismo, nunca é absoluta, seja porque todo trabalho manual é, sempre, intelectual também, sendo porque, a tão propalada independência e neutralidade dos intelectuais é uma ilusão, a consciência é também um processo social e material, sendo um processo derivado de uma sociedade de classes ele é um processo parcial e classista também, nunca imparcial ou “isento”. “O fato é, portanto, o seguinte: indivíduos determinados, que são ativos na produção de determinada maneira, contraem entre si estas relações sociais e políticas determinadas. A observação empírica tem de provar, em cada caso particular, empiricamente e sem nenhum tipo de mistificação ou especulação, a conexão entre a estrutura social e política e a produção. A estrutura social e o Estado provêm constantemente do processo de vida de indivíduos determinados, mas desses indivíduos não como podem aparecer na imaginação própria ou alheia, mas sim tal como realmente são, quer dizer, tal como atuam, como produzem materialmente e, portanto, tal como desenvolvem suas atividades sob determinados limites, pressupostos e condições materiais de vida, independente de seu arbítrio. A produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens ainda aparecem, aqui, como emanação direta do seu comportamento material. O mesmo vale para o processo de produção espiritual, tal como ele se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica de um povo. Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência (Bewuststsein) não podia jamais ser outra coisa se não o ser consciente (bewust Sein), e o ser dos homens é o seu processo de vida real. Se em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo, como numa câmara escura, este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos na retina de seu processo imediato físico”. (Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã, pp. 87-88, Boitempo, São Paulo, 2007, tradução de Ruben Enderle, Nélson Scheneider e Luciano Cavini Martorano). Assim, já podemos avançar para duas discussões importantes de Marx em Gramsci. A primeira sobre a ideologia como superestrutura. A estrutura material é que determina, “em última instância” (guardem esta ÚLTIMA INSTÂNCIA) a vida espiritual. Como marxista, como materialista, como monista, Gramsci parte dos mesmos pressupostos de Marx2 , de que a vida material é que determina a consciência. Mas, como dialético, Gramsci observa que esta vida espiritual tem determinações próprias e autônomas, a vida espiritual, as superestruturas, são, em última instância, também criações materiais e sociais. Assim, nas determinações dialéticas do todo contraditório, os opostos trocam incessantemente de lugar, como acaso e necessidade. A política é determinada em “última instância” pela economia. Mas as decisões políticas também mudam o rumo econômico, assim como o direito e reflexo teórico da vida econômica, mas suas restrições coercitivas também tem impacto econômico e podem influenciar na vida econômico. Este entendimento de uma certa autonomia das instâncias da superestrutura oxigena o marxismo, de um lado faz o alerta mostrando que o entendimento do processo de reprodução de vida material não é meramente econômica. A ÚLTIMA INSTÂNCIA (lembram que eu pedi para guardarem o nome), não é um determinismo mecanicista restrito, como se a economia por si só criasse toda a vida espiritual: religião, teatro, música, moda, etc. O conjunto das determinações das instâncias deve ser entendido e elaborado para se fazer análise de conjuntura. Contrabandeando uma ideia que não é gramsciana, mas que bem podia ser, que está na crítica que Sartre faz ao marxismo, há um certo tipo de “marxismo” que transformou a prévia ideação e a análise numa abstração retórica estéril, na qual tudo tem que se encaixar a modelos fechados anteriores marxistas (como aqueles brinquedinhos de criança de encaixe do jardim da infância). Se a realidade não se adapta à conjuntura, dane-se a realidade. Gramsci traça uma linha de fuga, mostrando que o termo ÚLTIMA INSTÂNCIA não é um mero acaso em Marx, mas a demonstração que há uma correlação dialética e funcional de todas as instâncias e elementos. Por isto ele demonstra na obra citada, que não é possível fazer uma análise determinista de conjuntura prévia, porque os elementos qualitativos e quantitativos mudam incessantemente de lugar, nos surpreendendo. A crítica conjuntural a uma determinada tarefa do movimento diante do enfrentamento de classes é, antes de tudo, práxis coletiva. Não que não se possa e não se deva fazer análise de conjuntura, mas esta nunca deve ser 2 Como são anotações de aula e não uma artigo acadêmico, fiz apenas 3 citações de Marx e nenhuma de Gramsci, mas toda a problematização é feita do texto citado de Gramsci, no início do trabalho. mecanicista, definitiva e determinista. Utiizando-se da linha de fuga dialética a um determinado tipo de “marxismo” fechado, dizemos sim, somos marxistas, à bela provocação que Sartre faz em seu artigo “o existencialismo é um humanismo”, quando acertadamente crítica um certo mecanicismo marxista. A segunda discussão é que esta vida espiritual, por mais que tenha uma instância autônoma, é sempre e sempre e sempre alicerçada na vida material. Numa estrutura de trabalho alienado e expropriado. Assim, as produções materiais-espirituais-sociais nunca são “neutras ou imparciais”. De novo pegando e contrabandeando Sartre (que não devia estar nesta aula, mas o formador é pouco ortodoxo e menos ainda disciplinado), o homem está condenado à liberdade. Nesta frase, no fundo, Sartre acaba tangenciando a famosa frase hegeliana repetida por Marx, “liberdade é a descoberta da necessidade”. Como materialista, Gramsci não coloca esta determinada autonomia das instâncias como algo imaterial e volitivo. A consciência social é produzida, é verdade, mas todo homem materialmente constituído está condenado à racionalidade. Ou seja, como diz Gramsci, “todo homem é um filósofo”. Todo homem tem uma cosmogonia, a prova mor de que todo homem é um filósofo é a linguagem, que não é um conjunto vazio de símbolos, antes um produto social herdado e aprendido socialmente, e que sempre é uma forma de representar o mundo. Assim, a autonomia das instâncias não está no etéreo, mas na sua existência no mundo prático dos homens, do qual, cada pessoa, mais ou menos “alienada”, sempre tem uma ideia concreta e total. A linguagem das coisas abstratas mostra a necessidade de racionalização e de se ordenar o mundo internamente. “Deus”, “amor”, “pátria”, “lealdade”, “socialismo”, são todos conceitos complexos que corporificam, ao fim e ao cabo, ideias sociais. Gramsci explica, e faz a síntese, o homem é um tripé. Ele é: 1. Sua constituição biológica, o ser em si do homem; 2. Um ser social, o homem só se faz homem através da dialética social; 3. Sua relação com a natureza, que não é relação contemplativa, antes é uma relação material, de indústria. Neste tripé, Gramsci vai montando sua explicação sobre ideologia. Se todos os homens são filósofos, todos os homens são ideólogos de alguma ideologia. Não quer dizer que todos os homens tenham consciência disto, ou que ordenem de forma coerente seu pensamento. Em todos os homens, há reflexos da ciência mais avançada e dos preconceitos mais atávicos. Cremos que avançamos um pouco na explicação da ideologia, primeiro como reflexo invertido do mundo, e, desta forma sempre limitada, social, datada no tempo e no espaço. Sim, datada no tempo e no espaço, toda ideologia está condenada à morte, inclusive a marxista. Todavia, a marxista só morrerá quando morrer junto seu objeto de estudo e combate, o capitalismo. Enquanto houver capitalismo, o marxismo será (novamente parafraseando Sartre), a única filosofia viva, já que é o único método capaz de explicar os processos sociais da reprodução ampliada da mais valia e do trabalho alienado. A produção da vida material é a produção do mundo dos homens: “(…) Devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, que os homens têm estar em condições de viver para “fazer história”. Mas para viver é necessário comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios de para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim, como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos. Mesmo que o mundo sensível, como em São Bruno, seja, reduzido a um cajado, e um mínimo, ele pressupõe a atividade de produção desse cajado. A primeira coisa a fazer em qualquer concepção histórica é, portanto, observar este fato fundamental em toda sua significação e em todo o seu alcance e a ele fazer justiça. (…). O segundo ponto é que a satisfação dessa primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento de satisfação já adquirido conduz a novas necessidades - e estas produção de necessidades constitui o primeiro ato histórico. (Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã, pp. 32-33, Boitempo, São Paulo, 2007, tradução de Ruben Enderle, Nélson Scheneider e Luciano Cavini Martorano). Cremos que avançamos um pouco na discussão, que será melhor clarificada na sala de aula. Recapitulando e tecendo a trama: I. O mundo dos homens é produzido material e socialmente pelos homens. II. A produção do mundo material dos homens cria novos instrumentos e novas necessidaades, ao fazer isto, os homens produzem sua práxis histórica. III. A base material é que determina em última instância a consciência social, ou seja a estrutura produz a super-estrutura. IV. A base material não produz mecânica ou diretamente cada instância das superestruturas, estas instâncias têm sua autonomia (não independência), mas são determinadas, em ÚLTIMA INSTÂNCIA, pela vida material. V. Nas análises mecanicistas as várias instâncias da vida material são ignoradas, um certo tipo de marxismo religioso e mecanicista é criado, o que não tem nada que ver com a dialética marxista. VI. A ideologia é reflexo social criado nesta jogo de co-determinação das instâncias. A ideologia e o pensamento também são produtos sociais. VII. O homem que cria o mundo material do homem, também é o portador, sujeito ativo-passivo da ideologia. Bem, feita a recapitulação acima, podemos avançar. Como diz meu amigo de além-mar, Carlos Carujo: “A dialética é como a coca-cola, na primeira vez, se estranha, nas outras, continua se estranhando”. Ao mesmo tempo que Gramsci diz “todos os homens são filósofos”, ele no segundo momento diz “nem todos os homens são filósofos”. É bom lembrar que o princípio da nãocontradição da lógica aristotélica não é inteiramente aplicável na dialética E se pode dizer, sem ser um abestado, todo homem é filósofo e, no momento seguinte, nem todo homem é filósofo. Gramsci vai dizer duas coisas muito importantes nesta segunda frase, ao negar que todos sejam filósofos. Primeiro ele vai mostrar que a Filosofia é também um saber próprio, científico, com regras racionais próprias e que, neste sentido, poucos homens são filósofos. E Grasmci vai propor coisas ainda mais intrigantes, ele vai propor que o “marxismo, num primeiro momento, não passa de um preconceito na cabeça do operário¨. É muito importante compreender o que Grasmci está dizendo. Gramsci via, nos exercícios de vulgarização, que até podiam ser bem intencionados, os riscos de rebaixamento do método dialético. A massificação de um certo marxismo mecanicista, podia levar ao messianismo ou ao fatalismo. Duas faces da mesma moeda, d um determinado tipo de “marxismo” que vai buscar na “análise” aquilo que previamente já sabia. Ao dizer que o marxismo no início é apenas um preconceito, ele faz o desafio de que a aprendizagem da dialética é um desafio cotidiano e que vai durar só a vida inteira de quem se interessar em aprendê-la. Em lugar de vulgarizar e rebaixar o marxismo, para ser entendido pelas massas, trabalhar as massas para ultrapassar a barreira do bom-senso e do senso-comum. Ao dizer que nem todos são filósofos, ainda que é desejável que todos sejam, esta afirmação tem várias implicações. A primeira da necessária e permanente formação das massas, já que, segundo Grasmci, o marxismo só poderá ser vitorioso quando tiver a força da religião, sem que se produção a secção que ele observara na igreja católica entre a religião dos intelectuais e a da plebe. Longe de um partido e poucos intelectuais e de uma massa conduzida, Gramsci defende a disseminação do método entre os trabalhadores. Não que ele fosse obreirista ou desdenhasse a cultura, mas não é do interesse desta aula o papel que Gramsci dá ao intelectual orgânico. Em segundo lugar, do dizer que nem todos são filósofos, e que o marxismo é, num primeiro momento, só um preconceito que substitui outros preconceitos, fica claro o alerta da necessidade de superação do bom-senso e do senso comum, rumo a um entendimento mais racional do mundo. Assim, para Gramsci marxismo e ciência são irmãos siameses, o estudo da dialética serve para a superação dos preconceitos, mecanicismos, compreensões rasas e simplificadas do mundo. A dialética é a própria ciência mais avançada e com ela tem que dialogar (a dialética marxista é a ciência mais avançada, mas não é toda a Ciência. Assim, como todos somos filósofos, com nossas limitações e com o desejo de sermos filósofos na acepção mais técnica, fica claro que todos somos parciais, partidários, classistas, políticos, quer queiramos ou saibamos ou não. Como a ideologia é uma produção social no tempo e no espaço, feita coletivamente pelos homens, todos os homens estão submetidos a ela. Mesmo os intelectuais que tem a ilusão da “neutralidade” (ilusão dada pela especialização de determinados ramos do saber produzida pelo capitalismo). Cabe a nós sermos homens-massa da ciência ou da política mais avançada, ou regredirmos a formas de consciência reacionária ou preconceitos atávicos. Roberto Ponciano – Mestre em Filosofia (UGF), Mestre em Letras Neolatinas (UFRJ), Especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo (CESIT-UNICAMP).