segunda-feira, 26 de junho de 2017

Um ateu num avião caindo continua ateu

"Todo mundo é ateu até o avião começar a cair". Me diz um amigo, com ar grave de seriedade e superioridade, como este fosse o argumento definitivo sobre o ateísmo. Num tempo de trevas, venda de indulgências, fanatismo, obscurantismo e proto-fascismo, é bom que os ateus saiam do armário e argumentem de forma racional.
Como filósofo e pesquisador, este argumento emotivo e raso, não mereceria muito minha atenção. Mas como é o argumento que pretendem ser o "definitivo" contra os ateus e todo e qualquer tipo de pensamento cético, vale a pena tecer algumas considerações sobre ele.
O argumento que parece ser uma forte afirmação e colocar todos os ateus de joelhos, clamando por padres, pastores, batismos e extrema unção, na verdade, se volta completamente contra a fé de quem o produz. Se não, vejamos.
Quem diz: "todo mundo é ateu até o avião começar a cair", na verdade, projeta no outro seus próprios desejos e medos. Ou projeta no ateu a fé numa instância metafísica que fará o motor do avião voltar a funcionar, do nada, ou, na pior das hipóteses, o conduzirá a uma vida eterna de prazeres indizíveis. Mas se o medo é o motivo para a fé, em lugar de depurar a fé e colocá-la numa instância elevadíssima, o que faz, quem diz este frase, é se colocar no mesmo nível das baratas. Sim, das baratas, meu caros.
Sim, Eros e Tanatos, são nossas pulsões básicas, de prazer e conservação. Até Eros se curva a Tanatos, o princípio do prazer se contrai diante do medo da morte e, por um instinto de conservação, o ser humano pode abdicar de tudo, do prazer à integridade moral (basta lembrar das delações premiadas fantasiosas do juiz Sérgio Moro, o medo de uma existência circunscrita a um cubículo, leva a pessoas a inventarem histórias fantásticas). Então, o instinto de sobrevivência que faz uma barata fugir correndo do chinelo, ou voar: ou um rato se meter em um buraco, ou saltar sobre seu agressor, como medida última, é o mesmo instinto atávico, primordial, elaborado em fé. Diante da morte e da impotência contra ela, em lugar de voar ou entrar num buraco, como ratos ou baratas, imaginemos que não morreremos.  Venhamos e convenhamos, o medo da morte não é lá um argumento muito bom ou razoável contra o ateísmo.
O deísta projeta no ateu o mesmo medo que sente da morte e aí ele está certo. Sim, todos sentimos medo da morte, ateus e deístas. De outro lado ele erra de muito, o medo da morte não é elaborado em todas as pessoas da mesma forma como a libido também não o é. Isto desde sempre, bastamos lembrar de Epicuro e sua tranquilidade ateia diante da morte. O argumento que parecia ser definitivo se voltou contra a fé. Se a fé é só medo, não é fé, é medo.
Uma religião de medo não e capaz de dialogar com nenhum ateu razoavelmente inteligente. O medo atávico da morte não é elocubrado  como fé de forma igual, assim como a libido não é igual em todas as pessoas. Existem pessoas cuja libido a leva a uma atração fortemente heterossexual, outras indiferentemente a um sexo ou outro, tem atração bissexual e um grande grupo tem atração homossexual e se realizam plenamente com pessoas do mesmo sexo. Pensar que a única forma de reagir diante da morte é acreditar numa vida pós túmulo com alguma recompensa de uma divindade é incorrer no mesmo erro que alguns heterossexuais homofóbicos reagem diante do prazer gay.
Há mil formas de libido, de Eros, há diversas formas de reagir a Tanatos, morte. Nem todo mundo transforma seu medo num paraíso e num pai protetor.
Aliás, deístas inteligentes não ousam esgrimir este argumento, que reduz fé a medo e um crente numa barata ou num rato.
Há melhores argumentos em defesa da fé.