O
objetivo desta dissertação é fazer um roteiro poético da infância
na poesia de Pablo Neruda, da infância mítica e onírica, como é
representada na poesia e na biografia de Neruda, na qual o panteísmo
dos bosques e das florestas de Temuco, assim como as experiências
auto-biográficas nos bosques andinos irá para sempre influenciar
seus poemas, reaparecendo, por exemplo, em Canto
General,
num poema de sua “maturidade”, como alturas de Machu Pichu.
Discutir
a imagem da infância, sempre idealizada, como retorno, como onírico,
como estilização da infância real e busca da inocência perdida,
do “bom selvagem de Rousseau”, de busca mítica do próprio “eu”,
do jogo psicanalítico entre o “id” e o “ego”, com a infância
representando o id, o irracional, o desejo.
O
texto vai mostrar como as imagens da infância em Temuco irão
reaparecer em toda a obra nerudiana.
Palavras-chave:
Pablo Neruda, Temuco, Infância, Crepusculário, 20 poemas de amor.
A
INFÂNCIA NA POESIA DE PABLO NERUDA
Este
texto visa averiguar o lugar que a infância vai guardar na poesia
de Pablo Neruda, não a infãncia real, mas a visão de infância
rememorada e criada na literatura, a infância como catarse e
onírico, como sonho e recomeço, inserido nas tentativas iníciais,
telúricas e panteística da visão da natureza em Temuco. A
infância num lugar selvático e pobre, na beleza dura do bosque e
da floresta andino, no qual passeava com seu pai, maquinista de
locomotivas. Também a visão da vida dura dos trabalhadores numa
pequena vila no coração da selva chilena, a vida familiar com su
“mamadre”, a madrasta doce que substituiu a mão de Neruda,
morta na primeira infância, e que encheu de cuidados o menino,
abrandando a dureza da sua condição. Na própria narração de
Neruda:
“comenzaré
por decir, sobre los días e años de mi infancia, que mi único
personaje inolvidable fue la lluvia. La gran lluvia austral que cae
como una catarata del Polo, desde los cielos del Cabo de Hornos,
hasta la frotera. En esta frontera, o Far West de mi patria, nací a
la vida, a la tierra, a la poesia, a la lluvia.
Por
muco que he caminado me parece que se ha perdido ese arte de llover
que se ejercía como un poder terrible y sutil en mi Araucania
natal. Llovía meses enteros, años enteros. La lluvía caía en
hilos como largas agujas de vidrio que se rompían en los techos, o
llegabans en olas transparentes, contra las ventanas, y cada casa
era una nave que dificilmente llegaba a puerto en aquel oceáno de
invierno.”1
A
chuva em Neruda não é a pura chuva da natureza, é uma sensação
sinestésico-poética panteísta que perdurará para sempre em seus
poemas, a relação onírica que se expressa ainda melhor na poesia,
a chuva caindo como agulhas de vidro nos telhados que são naves a
navegar num oceano chuvoso. Este retorno poético a uma natureza
idealizada não será substituída em nenhuma das fases de Neruda.
Mesmo na sua fase mais realista, no confronto da Guerra Civil
Espanhola, as hipérboles e hipérbatos de Pablo Neruda, sempre
tendem ao majestoso espetáculo do menino que andava a caçar
caracóis e aranhas na selva andino. Este sentimento de surpresa e
encantamento com o mundo, a relação estreita entre o onírico, a
mimésis e a catarse poética, por isto a poesia é um veículo
literário por excelência para este mergulho imaginário na
infância, tão ou mais que a prosa, que apenas a relata, sem
vivenciar em profundidade o mundo do id, do subconsciente, no qual
se adormece e se vivencia extra-temporalmente todos os traumas,
sustos, mas também as maravilhas e os prazeres da primeira
infância. De outra parte, a infância em Neruda também é tomar
parte com a realidade miserável do mundo proletário do interior
chileno:
“Por
las veredas, pisando en una piedra y en otra, contra frío y lluvía,
andábamos hacia el colegio. Los paraguas se los llevaba el viento.
Los impermeables eran caros, los guantes no me gustaban, los zapatos
se empapaba. Siempre recordaré la los calcetines mojados junto al
brasero y muchos zapatos echando vapor, como pequeñas locomotoras.
Luego venían las inundaciones, que se llevaban las poblaciones
donde vivían la gente más pobre, junto al río. También la tierra
se sacudía, temblorosa. Otras veces en la cordillera asomaba un
penacho de luz terrible: el volcán Llaíma despertaba.
Temuco
era una ciudad pionera, de esas ciudades sin pasado, pero com
ferreterías. Como los indios no saben leer, las ferreterías
ostentan sus notables emblemas en las calles: un imenso serrucho,
una olla gigantesca, un candado ciclópero, una cuchara antártica.
Más allá, las zapaterías, una bota colosal.2
Neste
trecho, na recordação da infância, vê-se a dualidade id x ego,
sonho x realidade, infância maturidade. No rememorar da infância,
não são só as sensações de prazer e medo, a natureza
representada em sua grandiosidade, mas toda uma narrativa social
(que também acompanhará Neruda na sua poesia), uma consciência de
classe, da sua pobreza, filho de um maquinista, e da pobreza ainda
maior a seu redor. Mesmo na representação retroativa da infância,
é sempre a voz do adulto que a reconstitui, assim, tanto o exagero
nas sensações, que caracteriza a parte sentimental, emocional,
como a parte ligada ao racional, às representações sociais, ou
seja ao ego, à maturidade. Este jogo também é parte da poesia, a
tentativa de compreensão humana dos jogos caóticos de sentimentos
e impressões de uma época, e será contínua na poesia de Pablo
Neruda, senão, vejamos este poema de Alturas
de Machu Pichu:3
Alturas
de Machu Pichu
I
Del
aire, como una red vacía
iba
yo entre las calles y la atmósfera, llegando y despidiendo,
en
el advenimiento del otoño la moneda extendida
de
las hojas, y entre la primavera y las espigas,
lo
que el más grande amor, como dentro de un guante
que
cae, nos entrega como una larga luna.
(Días
de fulgor vivo en la intemperie
de
los cuerpos: aceros convertidos
al
silencio del ácido:
noches
desdichadas hasta la última harina:
estambres
agredidos de la patria nupcial.)
Alguien
que me esperó entre los violines
encontró
un mundo como una torre enterrada
hundiendo
su espiral más abajo de todas
las
hojas de color de ronco azufre:
más
abajo, en el oro de la geología,
como
una espada envuelta en meteoros,
hundí
la mano turbulenta y dulce
en
lo más genital de lo terrestre.
Puse
la frente entre las olas profundas,
descendí
como gota entre la paz sulfúrica,
y,
como un ciego, regresé al jazmín
de
la gastada primavera humana.
Este
poema mostra a permanência dos temas e da experiência de infância
no Neruda maduro, em sua fase e face mais social, Canto
General. Quando
Neruda vai até a cidade inca perdida, última cidadela da grande
civilização ancestral, ele faz o paralelismo da origem de sua
infância com a origem mítica da América Austral. Em todo o poema,
o panteísmo naturalista de sua primeira infância refloresce, Machu
Pichu é Temuco, é o espanto infantil diante do novo mundo
descoberto, é como se o poeta adulto fosse de novo passageiro do
trem que o levava pelo bosque andino, é o mesmo espanto, a mesma
estupefação. As sensações e angústias de infância, a procura
do infinito e do atemporal através do mergulho íntimo, reaparece,
num livro dedicado à luta social. Quem não conhece os traços de
infância assinalados em Confieso
que he vivido e
em Para
nascer nasci, não
entenderá este paralelismo feito aqui. É o retorno íntimo a temas
recorrentes em sua primeira poesia,inclusive o tema erótico, “en
lo más genital de lo terrestre”, como o espanto adolescente
diante da descoberta do sexo, vejamos por exemplo,em Para
Nascer nasci.4
“minha
prima Isabela...Não conheci minha prima Isabela. Atravessei, anos
depois, o pátio ajardinado e que, me dizem, nos vimos e nos amamos
na infância. É um lugar de sombra: como nos cemitérios há neles
árvores inverniças e endurecidas. Um musgo amarelo rodeia as
cinturas de umas grandes malgas de greda cinzenta no pátios destas
lembranças... Foi pois ali onde vi minha prima Isabela.
Devo
ter lhe posto esses olhos dos meninos que esperam algo que vai
suceder, está sucedendo, sucedeu.
Prima
Isabela, noiva destinada, corre um caudal contínuo, terno entre
nossas solidões. Eu deste lado deito a correr na direção de vales
que não diviso, meus gritos, minhas ações, que regressam ao meu
lado em ecos inúteis e perdidos. Tu do outro lado.
Muitas
vezes, porém, rocei por ti, Isabela. Porque tu serás – quem sabe
onde! – essa recolhida mulher que, quando caminho no crepúsculo,
conta da janela, como eu, as primeiras estrelas.
Prima
Isabela, as primeiras estrelas.
Neste
trecho do livro Para
nascer nasci, se
vê claramente a idealização da infância, a prima, primeiro amor
e primeiro desejo, que na verdade Neruda não se lembra de ter
amado. Na recordação dos outros adultos, o próprio poeta idealiza
seu primeiro amor, seus primeiros silêncios, espantos e desejos. Na
verdade, em quase toda a poesia, o tema da infância é recontado e
remontado pelos adultos, como se fora o idílio da inocêncio, do
“bom selvagem” rousseauniano, como um eterno retorno, uma volta
a inocência e ao encantamento perdido. Neste caso, há também a
frustração por haver um oceano de distância e toda uma realidade
que os separou, e que faz de prima Isabela as primeiras estrelas, as
primeiras cintilações, na verdade, a idealização da mulher que
fazem os meninos e os adolescentes na puberdade. Esta sensação de
desatino, naufrâgio e perdição na mulher amada, idealizada, como
porto e destino será também tema de Neruda em seu Veinte
Poemas de amor e una canción desesperada,
que mesmo não sendo um livro que remonta à infância, por falar
das primeiras experiências amorosas juvenis, na profundidade do
sentimento que experimenta, também por serem suas primeiras
experiências, e duas comparações com a natureza, inclusive com o
espanto oceânico que sentiu Neruda à primeira vez que viu o mar,
marcam um retorno a sensações infantis e adolescentes, o abandono,
a melancolia, o desespero, a sensação angustiosa do mergulho em
sensações no qual o racional não tem o controle, vejamos a Canção
desesperada do
citado livro:5
LA
CANCIÓN DESESPERADA
Emerge
tu recuerdo de la noche en que estoy.
El
río anuda al mar su lamento obstinado.
Abandonado
como los muelles en el alba.
Es
la hora de partir, oh abandonado!
Sobre
mi corazón llueven frías corolas.
Oh
sentina de escombros, feroz cueva de náufragos!
En
ti se acumularon las guerras y los vuelos.
De
ti alzaron las alas los pájaros del canto.
Todo
te lo tragaste, como la lejanía.
Como
el mar, como el tiempo. Todo en ti fue
naufragio!
Era
la alegre hora del asalto y el beso.
La
hora del estupor que ardía como un faro.
Ansiedad
de piloto, furia de buzo ciego,
turbia
embriaguez de amor, todo en ti fue naufragio!
En
la infancia de niebla mi alma alada y herida.
Descubridor
perdido, todo en ti fue naufragio!
Te
ceñiste al dolor, te agarraste al deseo.
Te
tumbó la tristeza, todo en ti fue naufragio!
Hice
retroceder la muralla de sombra,
anduve
más allá del deseo y del acto.
Oh
carne, carne mía, mujer que amé y perdí,
a
ti en esta hora húmeda, evoco y hago canto.
Como
un vaso albergaste la infinita ternura,
y
el infinito olvido te trizó como a un vaso.
Era
la negra, negra soledad de las islas,
y
allí, mujer de amor, me acogieron tus brazos.
Era
la sed y el hambre, y tú fuiste la fruta.
Era
el duelo y las ruinas, y tú fuiste el milagro.
Ah
mujer, no sé cómo pudiste contenerme
en
la tierra de tu alma, y en la cruz de tus brazos!
Mi
deseo de ti fue el más terrible y corto,
el
más revuelto y ebrio, el más tirante y ávido.
Cementerio
de besos, aún hay fuego en tus tumbas,
aún
los racimos arden picoteados de pájaros.
Oh
la boca mordida, oh los besados miembros,
oh
los hambrientos dientes, oh los cuerpos trenzados.
Oh
la cópula loca de esperanza y esfuerzo
en
que nos anudamos y nos desesperamos.
Y
la ternura, leve como el agua y la harina.
Y
la palabra apenas comenzada en los labios.
Ése
fue mi destino y en él viajó mi anhelo,
y
en él cayó mi anhelo, todo en ti fue naufragio!
Oh
sentina de escombros, en ti todo caía,
qué
dolor no exprimiste, qué olas no te ahogaron.
De
tumbo en tumbo aún llameaste y cantaste
de
pie como un marino en la proa de un barco.
Aún
floreciste en cantos, aún rompiste en corrientes.
Oh
sentina de escombros, pozo abierto y amargo.
Pálido
buzo ciego, desventurado hondero,
descubridor
perdido, todo en ti fue naufragio!
Es
la hora de partir, la dura y fría hora
que
la noche sujeta a todo horario.
El
cinturón ruidoso del mar ciñe la costa.
Surgen
frías estrellas, emigran negros pájaros.
Abandonado
como los muelles en el alba.
Sólo
la sombra trémula se retuerce en mis manos.
Ah
más allá de todo. Ah más allá de todo.
Es
la hora de partir. Oh abandonado!
Ficam
claros os sentimentais infantis, e quase edipianos, o abandono, a
melancolia, o desespero, e a permanência da natureza, abandonado
com os cais no alvorecer. A figura poética vem cingida em sonho, o
mergulho no mar, é também o mergulho cego na origem, a volta
mítica à origem, quase a volta ao feto, já que o mar pode também
representar a geração e o início da vida. Na verdade, as figuras
poéticas da infâncias se espalham por toda a poesia de Pablo
Neruda, como um retorno estético, um recurso estilístico, que levo
o leitor ao mergulho em seu próprio id e em seu próprio sonho, em
suas próprias sensações sinestésicas de dor e prazer. Fogo e
água, fogo e cinzas, calor e frio, todo o tempo a dualidade
antitética leva a sensações quase barrocas, as hipérboles, o
exagero típico dos amores juvenis e adolescentes. A poesia vive
neste jogo de tentar trazer para o cotidiano racional e duro, as
sensações enterradas nos túmulos da alma. Os beijos estão
enterrados no subconsciente, como lembranças indeléveis de todo o
vivido, a rememoração também é catarse, a poesia uma
fuga/proteção contra o abandono. A infância não é só vivida
como narrativa, mas como estrutura de símbolos permanentes que vão
permanecer em toda a poesia de Neruda.
Também
a figura materna, idealizada, no caso, a sua madrasta, chamada por
ele mesmo de “mamadre”, Trinidad Candia Marverde, assim ele se
refere a sua madrasta e aos “mistérios” da sus casa:
Mi
padre se había casado en segundas nupcias con doña Trinidad Candia
Marverde, mi madrasta. Me parece increíble tener que dar este
nombre al ángel tutelar de mi infancia. Era diligente y dulce,
tenía sentido de humor campesino, una bondad ativa infatigable.
Apenas
llegaba mi padre, ella se transformaba sólo en una sombra suave
como todas las mujeres de entonces y de allá.
En
aquél salón vi bailar mazurcas y cuadrillas.
Había
en mi casa también un baúl com objetos fascinantes. En el fondo
relucía un maravilloso loro de calendario. Un día que mi madre
revolvía aquella arca sagrada yo me caí de cabeza adentro para
alcanzar el loro. Pero cuando fui creciendo lo abría secretamente.
Había unos abanicos perciosos e impalpables.
Conservo
otro recuerdo de aquel baúl. La primera novela de amor que me
apasionó. Eran centenares de tarjetas postales enviadas por alguien
que las firmaba no sé si Enriques o Alberto y todas dirigidas a
María Thielman. Estas tarjetas eran maravillosas. Eran retractos de
las actrizes de la época con vidriecitos engastados y a veces
cabellera pegada. También había castillos, ciudades y paisajes
lejanos. Durante años sólo me complací en las figuras. Pero, a
medidas que fui creciendo, fui leyendo aquellos mensajes de amor
escritos con una perfecta caligrafía. Siempre me imaginé que el
galán era un hombre de sombrero hongo, de bastón y brillante en la
corbata. Pero aquellas eran de arrebatadora pasión. Estaban
enviadas desde todos los puntos del globo por el viajero. Estaban
llenos de frases deslumbrantes, de audacia enamorada. Comencé yo a
enamorarme también de Maria Thielman. A ella me imaginaba como una
desdeñosa actriz, coronada de perlas. Pero, cómo habían llegado
al baúl de mi madre estas cartas, nunca pudo saberlo”.
Aqui,
muitos dos temas recorrentes da literatura sobre a infância,
primeiro a mãe, real, mas idealizada, sempre a portadora da ternura
e do carinho infinitos, e também com caracterização social, leal,
submissa, silenciosa, a sombra do pai de Neruda. No restante do
texto, a recontagem da infãncia com a imaginação preenchendo
magicamente os vazios do esquecimento. O autor das cartas, não se
sabe se é Enrique o Alberto, mas há uma lembrança total de que as
cartas eram “maravilhosas”. Na verdade, a lembrança da surpresa
das cartas de amor supre as lacunas do esquecimento e viram a
primeira novela lida pelo poeta, além do paralelismo dos cartões
postais às próprias viagens de Neruda, que foi diplomata e acabou
por viajar por um tempo muito grande de sua vida. Sempre na
recontagem mítica a infância é miraculosa e mágica, e surge o
baúl donde surgem figuras e cartaz que fazem voar a imaginação e
a veia poética. Para entender como calou profundamente em Neruda
sua infância na influência de suas imagens poéticas, voltamos a
Confieso
que he vivido
e anotamos a sua rememoração da imagem do trem e das viagens pelos
bosques:6
El
tren recorría un trozo de aquella provincia fría desde Temuco
hasta Carhue. Cruzaba inmensas extensiones deshabitadas sin
cultivos, cruzaba los bosques vírgenes, sonaba como un terremoto
por túneles y puentes. Las estaciones quedaban aisladas en medio
del campo, entre aromos e manzanos floridos. Los indios araucanos
con sus ropas rituales y su majestad ancestral esperaban en las
estaciones para vender a los pasajeros corderos, gallinas, huevos y
tejidos. (…)
Y
luego la ciudad fluvial. El tren daba sus pitazos más alegres,
oscurecía el campo y la estación ferroviaria con inmensos penachos
de humo de carbón, tintineaban las campanas, y se olía ya el curso
ancho, celeste y tranquilo, del río Imperial, que se acercaba del
óceano.
Na
recordação do próprio poeta, vários dos elementos constituintes
permanentes da sua poesia, a natureza, o bosque, os sinos, que
marcarão com seus sons e aparência toda sua poesia e o encontro
com o mar, com o qual Neruda terá um deslumbramento infantil por
toda sua temática poética. Neruda é um pintor marinho, e volta
sempre ao mar para falar de seus sentimentos, abandono, encontro,
êxtase, maravilhamento, o oceano faz parte integrante permanente do
seu onírico poético, vejamos como ele mesmo fala do mar em outro
trecho do mesmo livro: 7
“Son
playas que parecen infinitas. Forman a lo largo de Chile, como el
anillo de un planeta, como una sortija envolvente acosada por el
estruendo de los mares australes: una pista que semeja dar la vuelta
por la costa chilena más allá del polo sur”
Assim,
o mar de Neruda nunca é geográfico, é sempre a representação
maravilhosa de um êxtase permanente, como seu primeiro encontro com
o mar nas viagens ferroviárias. Para a poesia, este êxtase com o
selvático, esta permanência do maravilhamento infantil é crucial
para a criação das figuras poéticas. O deslumbramento faz com que
o mar nunca seja apenas o oceano, mas sempre a metáfora dos
sentimentos e sensações que evoca, e é uma das figuras mais
recorrentes na poesia de Pablo Neruda. Ele explica muitas das suas
experiências e vivências através de figuras marinhas, seja a
imensidão, seja o ritmo das ondas, seja a fugacidade da vida, seja
o amor como ondas quebrando na praia. O mar é uma das figuras que
atravessa toda sua vida, desde a sua infância, como uma rememoração
infantil reinterpretativa do mundo. Assim também, ele faz recuar a
criação de sua poesia a sua primeira infância e a sua solidão:8
“Que
soledad la de un pequeño niño poeta, vestido de negro, en la
frontera especiosa e terrible. La vida y los libros poco a poco me
van dejando entrever misterios abrumadores.
No
pudo olvidarme de lo que leí anoche: la fruta del pan salvó a
Sandokan y sus compañeros en una lejana Malasia.
No
me gusta Búfallo Bill porque mata a los indios. Pero qué buen
corredor de caballos! Que hermosas las praderas y las tiendas
cónicas de los pieles rojas!
Muchas
veces me han preguntado cuándo escribí mi primer poema, cuándo
nació mi poesía.
Trataré
de recordarlo. Muy atrás en mi infancia y habiendo apenas aprendido
a escribir, sentí una vez una intensa emoción y tracé unas
cuantas palabras semiarrumadas, pero extrañas a mi, diferentes del
lenguaje diario. Las puse en limpio en un papel, preso de una
ansiedad profunda, de un sentimiento hasta entonces desconocido,
especie de angustia y de tristeza. Era un poema dedicado a mi madre,
es decir, a la que conocí por tal, a la angelical madrastra cuya
suave sombra protegió toda mi infancia. Completamente incapaz de
juzgar mi primera producción, se la llevé a mis padres. Ellos
estaban en el comedor, sumergidos en una de esas conversaciones en
en voz baja que dividen más que un río el mundo de los niños y el
de los adultos. Les alargué el papel con las líneas, tembloroso
aún con la primera visita de la inspiración. Mi padre, distraído,
lo tomó de mis manos, distraídamente lo leyó, distraídamente me
lo devolvió, diciendome:
– De
dónde lo copiaste?
Y
siguió conversando en voz baja con mi madre de sus importantes y
remotos asuntos.
Me
parece recordar que así nació mi primer poema y que así recibía
la primera muestra distraída de crítica literaria.”
Fazer
retroceder a criação artística e estilística à infância também
é um mito de origem, de dom, ou talento nato. Na poesia de Neruda,
todos os mitos de infância são muito fortes e recorrentes. A base
de exaltação à natureza, de sinestesia, de mergulho nas dores,
angústias e prazeres da alma, está ligado, inclusive em sua
autobiografia, à recordação de sua infância e suas aventuras
pelo bosque chileno, e dos laços familiares, do pai amoroso, mas
severo, disciplinador e distraído, da mãe, atenta, afetuosa e
sempre presente. É o recontar e o rememorar da infância que é
preenchido permanentemente pela memória adulta, ou pela arte
adulta, pela estética adulta. O que teria ao fim a relação real
da poesia infantil de Neruda com sua poesia adulta? Imaginamos que
pouco ou quase nada, mas nos relatos de infância sempre se recua a
mais tenra idade e os laços são encadeados, da origem mítica,
resultando numa correlação em que o real se subsume à imaginação,
e todos os acontecimentos são recontados de forma a se resolverem
como causa do traço adulto, sem interrupções, ou separações
causados por experiências intermediárias. Não há antíteses, ou
saltos, mas acumulações quantitativas que se revelarão no
resultado final. Sabemos que a trajetória não é bem assim, o
remontar da história acaba preenchendo as lacunas de memória com a
imaginação já madura, e assim, os relatos completos, na verdade
são a idealização da infância, que antropoformiza a história de
forma que tudo conspira, desde a mais tenra infância para que
Neruda seja o grande poeta que foi.
A
permanência temática do que foi vivido na infância, como um
retorno permanente à terra natal, e no caso da mitologia nerudiana,
ancestral, fazendo retroceder ao passado araucano e mapuche, dos
povos originários, do grande império Inca massacrado (em Alturars
de Machu Pichu), e uma tentativa de reintegralização,
Tentativa do homem infinito, como ele mesmo grafa em um livro
sim. Ao mesmo tempo, a poesia social e socialista, de cunho
marxista, com uma outra visão, de finitude, de uma ética agnóstica
sem porvir místico e mítico, como só a poesia é capaz de fazer a
mescla. Se a militância política socialista e marxista de Neruda,
no Partido Comunista Chileno, assumindo todos os compromissos que um
militante comunista deve assumir, alguns contraditórios e
polêmicos, haja vista que o PCC segue a orientação soviética e
Neruda jamais irá sair do Partido Comunista, mesmo depois das
denúncias do Vigésimo Congresso do PCUS e dos chamados “crimes
de Stálin”. A poesia de Neruda, por seus elementos míticos
ligados à terra, à infância, à pátria, mas uma pátria infantil
e ancestral, jamais será reduzida ao realismo socialista que era
cobrado dos escritores comunistas e que custou polêmicas com os
surrealistas, causando o afastamento de André Breton do movimento
comunista, e depois com o realismo fantástico sul-americano, que
tinha vários militantes comunistas entre seus escritores, como
Gabriel Garcia Márquez e Vargas Llosa (hoje um homem do
establishment e da direita). Assim a estética de Neruda é muito
própria e incomum, seguindo uma linha que mescla várias fases e
experimentos da sua vida, aí inclui-se sua passagem na Espanha e as
várias experiências vanguardistas das quais tomará parte.
Por
último, neste trabalho, vamos comentar um texto da pesquisadora
Beatriz Fabiana Olarieta, professora da UERJ, sobre O livro das
perguntas, de Neruda, que
seria para ela uma permanência, ou uma volta à infância na poesia
do poeta. Já assinalamos aqui o forte lugar que a infância em
Temuco tem na poesia de Neruda e a presença que as imagens poéticas
oníricas e panteístas mantém na sua poesia. Para a professora
Beatriz Fabiana Olarieta, O
livro das perguntas
tem um lugar ainda mais especial. No seu artigo ela tenta localizar
este livro na literatura poética. Segundo ela:
este
ensaio explora a infância como uma dimensão da existência humana
que foge tanto da visão cronológica do tempo quanto da
linguagemcapturada pela lógica. Ao longo do trabalho mostra-se como
tempo e linguagem funcionam como estabilizadores da experiência e
como a infância fere a forma de ordenar o mundo que eles
habitualmente propiciam. Ao provocar uma desestabilização, ao
entrar numa dimensão inaugural, a infância que habita nas crianças
(mas não só nelas, nem sequer em todas elas) e na poesia abre uma
oportunidade para a criação de novos sentidos e traz a
multiplicidade e o movimento que habitam no mundo. Pensar-nos é
necessariamente pensar-nos no tempo. Não há experiência possível
fora do tempo. Por sua vez, da forma que entendamos o tempo
dependerão as possibilidades ou impossibilidades da nossa
experiência. A infância costuma ser considerada como uma etapa de
transição que vai constituir o passado do qual nós adultos
provimos. Do mesmo modo, é habitual transformá-la em promessa de
futuro de nossa espécie. Na busca de uma compreensão que escapa
dessa perspectiva, apresenta-se aqui a infância do tempo como um
devir que excede os corpos das crianças e penetra no de um velho
poeta. Deleuze permeia essa possibilidade. Por outra parte, nossa
experiência também se define na linguagem. As palavras nos
ensinarão não só a dizer, mas também a ver, a pensar, a
compreender as coisas e a compreender-nos de um modo particular. 9
Assim,
para a Fabiana, quando um poeta como Neruda utiliza de perguntas que
teriam uma conotação infantil num livro de poesias, o livro das
perguntas, ele faz uma inversão e uma subversão de cânones e
regras. Este volta ao passado tem a particularidade de se subtrair
ao logicismo cartesiano mais formal, e dar a liberdade fluida do
onírico para a poesia.10
Então,
quando alguém entra na infância da linguagem (além da idade que
tenha), quando brinca com as palavras e as força a dizer coisas
novas, brinca com os sentidos do mundo, brinca com o modo que esse
mundo é pensado e percebido, com o modo ue esse mundo se apresenta
e com as possibilidades que temos de agir nele.
Assim,
dar “voz as crianças” é uma forma de libertar desejos poéticos
profundos, que através da licença da idade ainda não madura dá
um escapismo para sentimentos e formas, que de outra forma seriam
censuradas pelo superego ou pela crítica literária. O retorno
lúdico dá a liberdade de criação para um dimensão em que se
pode brincar com palavras e sentidos, como nos cronópios e
famas de Cortázar, que mitologicamente faziam a inversão e
subversão de tudo, inclusive do tempo. Vejamos a análise que
Olarieta faz de um trecho de Neruda:11
Pablo
Neruda preencheu a páginas do Livro das perguntas (2008), tal como
o título o indica, exclusivamente com perguntas como:
Como
se chama a flor
que
voa de pássaro em pássaro?
Quantas
semanas tem um dia
e
quantos anos tem um mês? (XXIII)
Que
distância em metros redondos
há
entre o sol e as laranjas?
Quem
acorda o sol quando dorme
em
sua cama abrasadora? (XXIX)
Foi
onde enfim me perderam
que
consegui me encontrar? (XXXIII)
Quanto
dura um rinoceronte
depois
de ser enternecido?
As
folhas vivem o inverno
em
segredo, com as raízes?
Que
aprendeu da terra a árvore
para
conversar com o céu?(XLI)
Sofre
mais quem espera sempre
ou
quem nunca esperou ninguém? (XLII)
Quem
era aquela que te amou
no
sonho, quando dormias?
Para
onde vão as coisas do sonho?
Vão
para o sonho dos outros? (XLIII)
O
amarelo dos bosques
é
o mesmo do ano passado?
E
onde o espaço termina
se
chama morte o infinito? (XLV)
Quando
vejo de novo o mar,
o
mar me viu ou não me viu? (XLIX)
Se
todos os rios são doces
de
onde o mar tira o sal?
Como
sabem as estações
que
devem trocar de camisa? (LXXII)
Podemos
perceber como algo do que ouvimos nas expressões das crianças ecoa
nos versos de Neruda. Alguma espécie de parentesco parece
vinculá-los. Há algo de criança nesses versos. Mas, já não
temos aqui a possibilidade de atribuir à idade a causa destas
palavras simpáticas(?), imaturas(?), poéticas(?). Para não
renunciar às explicações prontas, temos ainda o recurso de acusar
Neruda de estar copiando às crianças. Mas, será que os versos de
Neruda estão imitando a criança ainda não amadurecida? Outra
possibilidade seria considerar que a causa do infantil desses versos
se encontra nos destinatários. Será que o poetaestava querendo
destinar seu livro às crianças? Qual é essa infância que
percebemos no poeta chileno? Não está claro.O Livro das perguntas
nos coloca perante a evidência de uma infância que não podemos
digerir facilmente com as ideias que temos.
A
crítica de Olarieta mostra a percepção do jogo que Neruda faz com
as palavras e os sentidos, para além dos sentidos comuns dito
adultos. Esta regressão, em perguntas que muitas vezes não parecem
fazer “sentido”, vão buscar o sentido oculto, onírico, o
sentido subconsciente, não desperto, o sentido não adulto. Na
verdade, o livro das perguntas recoloca questões sobre a nossa
percepção do mundo e até quando ela faz sentido, se o sentido
puramente cronológico do tempo e o senso-comum que organiza o caos
perceptivo bastam para todas as perguntas. É um livro de perguntas
sem respostas, nas quais se inquere pelo simples prazer de inquirir,
o que fazem as crianças, desde quando o mundo é uma novidade para
elas, ao contrário dos adultos, para os quais o mundo vai perdendo
o sabor e o viço. Por isto é um livro duplo, um livro de crianças
para adultos, um livro de um adultos para crianças perspicazes.
Prossegue Olarieta:
O
livro, lançado no Brasil no ano 2008, não cede facilmente às
classificações por idades em que a literatura tão comumente é
processada pela indústria editorial. Será um livro próprio de uma
coleção infanto-juvenil ou será um livro para adultos? A editora
resolveu o problema colocando o título tanto entre os livros
destinados às crianças quanto no setor nomeado “adulto”.
Figura duas vezes no seu catálogo. Estas mais de 300 perguntas
resultam inclassificáveis, resistem a serem definidas pelo claro
contorno de um gênero ou subgênero definido com base na idade.
Vamos
considerar, então, uma infância que de algum jeito tem a ver com
ascrianças, mas que não tem a ver exclusivamente com elas, nem
sequer tem a ver com todas as crianças.
(...)No
que respeita ao tempo, a infância costuma ser pensada como uma
etapa de transição que vai constituir o passado do qual nós
adultos provimos. Esse trecho do caminho que hoje transitam aqueles
que são crianças já foi percorrido e superado por nós e, por
isso, achamos saber de que se trata. Ao mesmo tempo, costumamos
transformar a infância em promessa de futuro de nossa espécie. São
as crianças de hoje (adultos do amanhã) as que recebem a missão
de melhorar no mundo aquilo que nós não quisemos ou não soubemos
fazer. Essa visão tem de fundo uma concepção de tempo que ordena
e distribui, uniformemente, momentos que se sucedem em uma linha
cronológica. O tempo, desde esta perspectiva, parece algo estático
e acumulável. Colocados aqui achamos que o tempo pode congelar-se.
Dividindo meticulosamente com nossos relógios, em fragmentos
exatamente iguais, segundos, minutos e horas; organizando em nossos
calendários dias, meses e anos, acabamos acreditando que o tempo
pode ser medido, controlado, que podemos distinguir quando cada
fragmento começa e quando acaba. Inclusive chegamos a acreditar que
podemos acumular tempo. E assim como sessenta segundos fazem um
minuto e sete dias uma semana, determinada quantidade de anos faz
uma infância. Desde essa lógica os versos de Pablo Neruda não tem
mais chance do que a ser uma triste e empobrecida imitação de um
tempo que para o velho poeta já passou e que não retornará.
O
livro não tem “lógica” a partir da percepção de um tempo
como uma cronologia contável e evolutiva, no qual cumprimos tarefas
sociais e biológicas determinadas, e que inclusive é tempo de
trabalho, alienado, vendido, com tarefas obrigatórias a serem
cumpridas, contra o desejo e a vontade. Típico de adultos é
alienar-se esta vontade sem reclamar, as crianças o tempo não é
representado por tarefas. O mundo adulto as vai incorporando e
disciplinando, hierarquizando. A escola não ensina somente ciência,
ensina hierarquia, disciplina, tempo. Visto pelo tempo
fordista-taylorista da produção o livro de Neruda é um
contrassenso. A poesia tem também esta missão, de ser contrassenso
num mundo alienado, de ser a crítica, por vezes disfarçada de
pueril de uma lógica que não tem nenhuma lógica, das convenções
sociais forçadas e marcadas no relógio. Por estas razões e que no
onírico do surrealismo de Dalí o relógio derrete, é o tempo do
sonho, do id, dos loucos e das crianças. A criança permissiva que
ousa brincar com as palavras, “perder” seu tempo, a lógica
contrária de que tempo é dinheiro. O tempo da fruição, do gozo,
da brincadeira. O homem por definição, define-se no tempo e no
espaço, mas as definições que temos do tempo e do espaço são
sociais, assim como nossas noções de infância, que é um conceito
criado historicamente. Fabiana comenta:
O
filósofo Gilles Deleuze falando da arte, e especificamente da
literatura, afirma: “À sua maneira, a arte diz o que dizem as
crianças. Ela é feita de trajetos e devires” (1997, p. 78).
Nesta imagem a infância está associada ao movimento, a trajetos e
devires, ao deslocamento - e não à fixação em uma etapa com
começo e fim.
Em
L'Abécédaire (1996), uma longa entrevista na qual Claire Parnet
oferece uma série de palavras ordenadas alfabeticamente para que o
filósofo se pronuncie àrespeito, quando chega o momento do E, a
palavra escolhida é enfant (criança). Claire Parnet pergunta, por
detalhes e episódios da infância de Deleuze e ele conta. Em um
momento a entrevistadora assinala da pouca importância que o
filósofo dá a sua própria infância. Ele assente e começa a
falar sobre a escrita e a pouca importância que tem para o escritor
as questões individuais, a memória pessoal, o arquivo. A escrita é
empurrar a linguagem ao limite - diz Deleuze -, gaguejar, devir uma
criança, não a partir da própria infância, mas antes da infância
do mundo.
Escrever
é devir, afirma, devir-animal, devir-criança. Escreve-se para a
vida, para devir algo, exceto devir um escritor e exceto devir um
arquivo. Então, devir-criança, entrar na infância, não tem a ver
com fazer um exercício de lembrar aquele momento da nossa vida, com
tentar recuperar artificialmente esse tempo perdido. Tem a ver com
se deixar levar por esse exercício de olhar o mundo, de se
relacionar com ele desde uma espécie de fluxo infantil, de tempo
infantil, de trajetos infantis.
Não
se trata de voltar sobre a própria infância, mas antes, de entrar
na “infância do mundo”, de permanecer uma criança do mundo.
Essa infância do mundo não tem a ver com a criança que uma vez se
foi, mas com o movimento de ser uma criança. Tratasse de entrar na
intensidade de um tempo que não é quantificável, que não é
mensurável, que se manifesta múltiplo e que nos permite fazer
maleáveis os limites que definem nosso mundo.
Assim,
a infância literária é sempre este retorno. Não é a infância
real, ou o retorno real à infância, mas o retorno à infância
pelo que ela representa aos olhos do adulto. A inocência, o bom
selvagem, o id, o onírico, o tempo sem cronometria, o jogo. O
eterno-devir de um tempo que flui sem necessariamente ser o tempo da
morte e da angústia do fim. É uma recomposição, uma forma de
reintegrar os medos. É a volta à infância do mundo, o século de
ouro, sem mal e sem pecado. As perguntas de Neruda, no fim de sua
vida, são o retorno do cansado viajante à sua terra natal e a
recomposição poética dos sentidos do mundo. E neste ponto a
poesia vale mais que a prosa. Mesmo que na prosa haja
reconstituições da infâncias, são apenas narrativas de infância,
a recomposição dos sentidos infantis, sem hierarquias, limites,
responsabilidades é feito pelo poema, que não tem compromisso de
verossimilhança. O sol pode ser uma laranja deliciosa de ser
sugada, a catarse de tudo que não faz sentido. A busca da utopia
tão sonhada. Olarieta explica assim O livro de perguntas:12
Uma
criança irrompe no corpo velho de Neruda e também uma infância
toma conta dos pequenos corpos das crianças. Eles estão entrando
na “infância do mundo” que ultrapassa seus corpos e sua idade.
Estão criando uma intimidade com o devir do mundo. Estão sendo
pegos por um devir-criança. O infantil nas palavras das crianças
não tem a ver com a curta idade delas. O infantil na literatura de
Neruda não tem a ver com a idade do poeta nem com a idade de uns
possíveis destinatários. O infantil em ambos os casos não é um
adjetivo, esse que se usa para inferiorizar alguém acusando-o de
ter uma atitude “infantil” ou inclusive para “empequenecer”
uma literatura. O infantil aqui é um verbo, uma ação, um
exercício que abre mundos, que traz novas formas de olhar e de
transformar o que achamos já conhecido, já sabido; é olhar o
mundo como se fosse a primeira vez; é trazer sua novidade, sua
abertura - essa que tentamos de forma infrutífera cristalizar com
nossa linguagem que explica e nos fornece certezas que fecham; é
entrar no movimento do mundo que nada tem a ver com essa monótona
repetição mecânica do mesmo que nossos orgulhosos relógios
quantificam e secam.
Por
que é que todo dia é hoje?
Quantas
semanas têm um dia e quantos anos têm um mês?
Você
já pensou se o esquilo se chamasse caranguejo?
Que
distância em metros redondos há entre o sol e as laranjas?
Quando
acende a luz, pra onde é que vai o escuro?
Meu
desenho é pressa. É um traço correndo atrás do outro.
Essas
palavras infantis são palavras que transportam nossas palavras
adultas para sua fronteira, que deixam nossos sentidos suspensos,
afinados, dispostos, para perceber a abertura do mundo e se permitem
criar esse mundo. Isso é o que vincula as crianças com Neruda, a
infância com a arte (neste caso a arte poética).
Assim,
a infância em Neruda é uma forma de estética do absurdo, surreal,
sonhada, não só no tempo, mas na linguagem. A infância não é só
um tempo, uma linguagem própria, de mistérios, de segredos, de
sussurros, que separam os problemas “sérios” do mundo adulto
dos mundos de surpresas, inquietações e mistérios das crianças.
A primeira visão do mar, o primeiro beijo, a primeira nudez, a
primeira viagem de avião. Tudo na infância contém um frescor que
se perde na idade adulta, e a linguagem infantil tem todo um cuidado
com estas surpresas, assim como a linguagem dos esquimós tem
dezenas de adjetivos para qualificar a neve. O retorno à linguagem
da infância é duplo, é um retorno-fuga, e um retorno-devir. Se é
uma fuga da realidade, é também uma negação dialética dela, no
desejo de uma realidade outra melhor, o que a identifica com a
linguagem utópica das épocas de crise, por exemplo, da expostas
nas canções de protesto que cantam que “amanhã vai ser outro
dia”. O tempo aí não é cronológico, o amanhã é o desejo de
um outro mundo possível. Assim uma outra linguagem visa a construir
uma outra realidade. Vejamos em Olarieta:
Nascemos
sem saber falar, para nomear-nos e nomear o mundo, inevitavelmente,
acabaremos valendo-nos das palavras e significados que nos serão
cuidadosamente ensinados. Mas essas palavras nos ensinarão não só
a dizer, mas também a ver, a pensar, a compreender as coisas e a
compreender-nos de um modo particular. Essas palavras, e o modo de
relacioná-las que temos aprendido, ao mesmo tempo em que apresentam
um mundo, marcam um limite. Aprendemos que cada coisa tem um nome,
inclusive nós mesmos. Aprendemos a nomearmos de um jeito
determinado, aprendemos a dizer quem somos e como somos.
Aprendemos
a ver o mundo a partir do que esses nomes nos permitem distinguir e
temos dificuldades para ver aquilo que as palavras do nosso
dicionário não mencionam. As palavras, ao mesmo tempo em que
apresentam, ocultam. Não porque sejam mentirosas, mas porque
definem contornos, agrupam coisas e ideias, ordenam e constroem um
mundo que para nós se apresenta como “o mundo”.
Assim,
vai se tecendo uma complexa trama de sentido que abre e delimita
desde nossas experiências mais simples até as mais complexas.
Quando,
com o passar do tempo e o trabalho da educação, uma criança
consegue dominar com propriedade o código da sua língua e, junto
com ela, o mundo simbólico da sua cultura, consideramos que ela já
entende, que pode ser dona de seus atos e a declaramos adulta.
Apropriar-se de uma linguagem adulta, significa apropriar-se de uma
lógica, de uma forma de pensar e de se relacionar com o mundo.
Junto
com as palavras aprendemos que uma coisa não pode ser ela e outra
ao mesmo tempo. A partir da linguagem estabelecemos divisões claras
que nos permitem agir, mas acabamos achando que essas divisões
provêm do mundo, que nós simplesmente representamos essa ordem da
melhor forma possível.
Ou
seja, o discurso formal, narrativo e dissertativo estabiliza o
mundo. A linguagem busca a estabilidade contra o caos, a
padronização, a gramática. A poesia é uma grande transgressora.
Não é à toa que malditos como Baudalaire e Mallarme, e
subversivos como Neruda, Brecht e Maiakovsky tenham escolhido a
poesia. A licença poética por vezes se transforma mesmo em
licenciosidade, as regras da poesia, suas formas, são
constantemente mutáveis, transgredidas e sua linguagem metafórica,
visa sempre o sentido oculto e profundo da realidade, na verdade, é
como se fosse o espelho invertido da realidade. A transgressão dos
sentidos existente no livro das perguntas existe na forma de vários
poemas de Neruda, no panteísmo de seus cenários e na angústia de
seus amores. A poesia em si já não se considera por vezes uma
infantilidade? Num mundo em que todos correm para se verem
valorizados em valores capitalistas, qual o espaço para um
menestrel? Assim, a linguagem poética dita infantil não é da
infância propriamente dita, mas da infância reconstituída e
reconstituinte de sentidos. Aprender a falar, aprender gramática,
também é aprender a se conformar com o mundo, classificá-lo,
dividi-lo, estabilizá-lo. Vejamos em Olarieta:13
Quando
o mecanismo parece estar lubrificado, quando depois de passar por um
longo processo conseguimos dominar nossa língua e nos tornamos
experientes no exercício de codificar e decodificar o mundo que nos
rodeia, de demarcar com nossas palavras suas seguras fronteiras,
chegam aqueles que não sabem ainda falar.
Eles
desconhecem nossa língua e precisam aprendê-la. Aprende-se a falar
falando.
E
é nesse jogo com essa linguagem que se lhes apresenta como
totalmente nova que as crianças, essas recém-chegadas, forçam as
palavras a inaugurar sentidos tão novos quanto elas. Estão também
aqueles que, apesar de sua idade avultada, nunca aprenderam a falar
e que, com um simples arredondamento dos metros, são capazes de
traspassar as fronteiras estabelecidas e, subitamente, nos
apresentar com a força de uma evidência a intensa intimidade que
vincula o sol e as laranjas.
Dissemos
que as palavras são muito mais que fonemas e grafemas que se
combinam. Elas tecem sentidos, os sentidos com os quais lemos o
mundo e a partir dos quais agimos nele. Então, quando alguém
brinca com as palavras e as força a dizer coisas novas, está
brincando com os sentidos instalados do mundo, está criando novos
sentidos para compreender esse mundo, ou melhor, está criando novos
mundos.
Podemos
ver assim como a infância, como colocávamos no início, tem a ver
com uma desestabilização, com um desarrumar o que estava ordenado
e fixado, com um entrar nessa dimensão inaugural do tempo e da
linguagem.
A
poesia então reinaugura o tempo de viver, o tempo não é mais
cronológico, mas disperso, infinito, não no sentido de uma vida
eterna, mas de sua fluidez e vivência. Por isto os poetas são
perigosos e banidos da República de Platão. Sua exigência que o
da busca de outros sentidos, de polissemias é capaz de colocar em
xeque qualquer mecanismo social “perfeito”. Mesmo a utopia,
quando buscada, em autores como Neruda e Brecht, deixa um espaço de
escape, porque a poesia não existe sem uma certa ironia, um certo
ar de mofa ao poder. Funciona muito bem na crítica e na ironia, e
mal na apologia, exatamente como o sonho é catarse e absurdo e não
se enquadra nas regras funcionais sociais, antes é seu escape.
Assim a poesia é retorno e sonho, fabricação permanente de
sentido humano contra ordens mecanicistas, uma desastabilização da
engrenagem de ordens e obrigações. Assim, segue Olarieta14
Depois
de colocar as crianças do “humor infantil” ao lado do sol e as
laranjas de Neruda, inevitavelmente aparecem as palavras de Rilke:
“Arte é infância. Arte significa não saber que o mundo já
existe, e fazer um. Não destruir nada que se encontra, mas
simplesmente não achar nada pronto.”
Essa
possibilidade de inaugurar mundos que Rilke atribui ao trabalho da
arte é o que estamos chamando aqui de infância.Uma infância que
nos desafia e que obriga a repensar o sentido que pode ter a
educação, que habitualmente é entendida como um trabalho de
acompanhar a criança no seu trânsito para a adultez. A educação
costuma ser um trabalho de construção, de estabilização de
sentidos que vão fazendo que crianças e adultos esqueçam que nada
já é, que nada está pronto, que o mundo é múltiplo e que não
há mais que possibilidades.
Assim,
o livro das perguntas de Neruda se insere neste rol de literaturas
que dissolvem a realidade, como as Histórias de Cronópios e
Famas, de Cortázar, mas que na verdade, são acido diluentes e
críticos da falsa seriedade de um mundo que vive através de
compreensões apreendidas e da multidimensionalidade. Um livro dos
últimos da vida de Neruda, de um poeta maduro, velho, que volta à
linguagem da infância para ter uma outra dimensão e poder
cochichar segredos de noite a nossso ouvidos, nos fazer perguntar
pelo que realmente vale viver.
CONCLUSÃO
Nesta
pequena resenha não nos propusemos a fazer uma retrospectiva
autobiográfica da infância de Neruda, mas sim, a partir da forma
como ele mesmo reconta a sua infância ir buscar as figuras poéticas
que ficarão marcadas em sua poesia. Usando os livros
autobiográficos: Confieso que he vivido e Para nascer
nasci, a partir de seus próprios relatos, recuperamos as
figuras que ele diz tomar da sua infância. O bosque e a mata
chilena andina, a vida simples do povo proletário e semiproletário,
uma interpretação mística, mítica e panteística da natureza, a
adoração e o espanto diante da figura e da beleza feminina, o
espanto e a adoração do mar. Por fim, o retorno à uma linguagem
infantil em O livro das perguntas, deixam pistas de que
Neruda é um poeta que valoriza sobremaneira os traços biográficos
e estilísticos herdados da infância, ainda que toda a experiência
de vida que ele tem, diplomática, a guerra, o exílio, a militância
no Partido Comunista Chileno, sejam elementos constitutivos da sua
poesia. Todavia, mesmo no Neruda da maturidade, como em o Canto
Geral, quando ele escreve Alturas de Machu Pichu,
há o retorno do menino maravilhado nos passeios de locomotiva por
Temuco.
É
sempre um maravilhamento, uma descoberta, uma porta aberta ao
absurdo, ao estupor, ao novo, que faz com que sua poesia tenha
sempre este gosto de bosque andino. Estará certo Rilke em dizer que
Arte é infãncia, um eterno reconstituir-se, um eterno múltiplo?
Não sabemos, ou se sabemos, sabemos ao lado de outras conclusões,
a infância é uma polissemia, é a infância, mas é um outro, uma
figuração da infância, uma farsa, um teatro reconstituinte do que
ela foi realmente, no qual a criação literária recompõe as
lacunas da memória.
BIBLIOGRAFIA
BERNARDINELLI,
Afonso, 2007,
Da
poesia à prosa; tradução
de Maurício Santana Dias, Cosacnayf, São Paulo.
HAMBURGUER,
Michael; 2007,
tradução
Alípio Correira de França Neto, Cosacnayf, São Paulo.
LOPES
DE ABIEDA, José Manuel;
1986,
A
experiencia madrileña de Neruda: su evolución ideológica, el
cambio de estética y su compromiso frente a España,
Instituto Cervantes, anales de literatura española, publicaciones
periódicas, nº 5, 1986-1987, 215 pp.
LORCA,
Federico Garcia;
1999,
Romancero
gitano in Obra Poética Completa;
apresentação Ático Villas-Boas da Mota; tradução William Angel
de Mello; edição bilíngüe; 3ª edição – São Paulo; Martins
Fontes, 1999, 637 pp.
NERUDA,
Pablo;
1996, Para
nascer nasci;
Tradução de Rolando Roque da Silva; 8ª edição; Rio de Janeiro;
Bertrand Brasil;, 376 pp.
NERUDA,
Pablo;
1998, Cadenos
de Temuco;
texto original e tradução de Thiago de Melloa, edição e prólogo,
Victor Farias, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro,, 139 p.
NERUDA,
Pablo;
1999, Vinte
poemas de amor e uma canção desesperada;
texto integral e tradução de Domingos Carvalho da Silva; 23ª
edição, Rio de Janeiro; José Olímpio Editora, 1999, 135 pp.
NERUDA,
Pablo;
2000,
Os
versos do capitão;
texto integral e tradução de Thiago de Mello, 4ª edição;
Bertrand Brasil; Rio de Janeiro, 127 pp.
NERUDA,
Pablo;
1998, Memorial
de isla negra;
Editorial Oveja Negra; 1982, Bogotá, 153 p.
NERUDA,
Pablo;
Residência
na terra;
tradução de Paulo Mendes Campos; edição bilíngüe; L&PM
Pocket; Porto Alegre, 185 pp.
NERUDA,
Pablo; 2004,
Barcarola;
Tradução
de Olga Savary; L&PM Pocket; Porto Alegre; setembro, 210 pp.
NERUDA,
Pablo;
2005,
Confieso
que he vivido,
Pehuén Editores, Santiago – Chile, primeira edición, 415 pp.
NERUDA,
Pablo;
Canto
Geral,
Bertrand Editores Brasil, Rio de Janeiro, 200, 584 pp.
OLARIETA,
Beatriz Fabiana; 2013, O
sol e as laranjas, ou sobre o lugar onde as crianças e a poesia se
encontram; Unversidade
do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Brasil, childhood
& philosophy,
rio de janeiro, v.9, n. 17, jan-jun. 2013, pp. 11-23. issn 1984-5987
ROVIRA,
José Carlos;
1991, Para
leer a Pablo Neruda,
Madrid, Palas Atenea, 85 pp.
YURKEVICH,
Saúl;1984,
in
A
través de la Trama,
in Muchnik Editores, Santiago, 115 pp.
1Neruda,
Pablo, 2005, p 13
2Neruda,
Pablo; 2005, p. 14
3Neruda,
Pablo; 2003, p. 40
4Neruda,
Pablo; 1978, p. 8
5Neruda,
Pablo, 1989
6Neruda,
Pablo, 2005, p. 23
7Neruda,
Pablo, 2005, p. 32
8Neruda,
Pablo, 2005, p. 30
9OLARIETA,
Beatriz Fabiana, 2013
10OLARIETA,
Beatriz Fabiana, 2013
11OLARIETA,
Beatriz Fabiana, 2013
12OLARIETA,
Beatriz Fabiana, 2013
13OLARIETA,
Beatriz Fabiana, 2013
14OLARIETA,
Beatriz Fabiana, 2013