sexta-feira, 15 de julho de 2011

Ainda a memória


A questão da memória hoje é, sem dúvida, fundamental. Por isto volto a este assunto. Este ano Orlando Silva faria 90 anos. Nascido em 1915, este mulato, filho de lavadeira, tornar-se-ia um dos maiores nomes e uma das maiores vozes do rádio. Chamado de “O Cantor das Multidões”, no auge do sucesso não podia sequer sair às ruas tranquilamente. Com uma voz potente e marcante, ele cantou os maiores sucessos da era do rádio, dos maiores compositores da época, gente como Orestes Barbosa, Ari Barroso, Wilson Batista, Geraldo Pereira e outros do mesmo naipe. Morreu praticamente no esquecimento. Os anos não lhe fizeram justiça, e como muitos outros ídolos brasileiros, o cantor das multidões se tornou um ilustre anônimo, cunhou a frase “No Brasil a gente não pode envelhecer”.
Como ele, desbotados, grandes ícones da nossa música vão se tornando grandes mistérios para a nova geração. O rei do Baião, Luiz Gonzaga, morto não faz muito tempo, já está se tornando alguém tão distante no tempo para nós como um Domingos Caldas Barbosa, ou Chiquinha Gonzaga. Os garotos que fazem o péssimo forró universitário cada vez menos entendem daqueles que disseminaram e tornaram o forró, o xote, o xaxado, a embolada músicas populares. Pergunte a algum destes garotos de penteado impecável quem foi Humberto Teixeira e Zé Dantas e haverá um silêncio constrangedor. Na verdade, eles sequer conhecem “Quinteto Violado”, vivos e atuantes, uma das joias raras da nossa cultura nordestina. Na forma pronta de fazer sucesso o que mais vale é a indumentária. Uma maneira de tocar repetitiva e monótona, letras repetitivas, meninas vestidas com saias minúsculas, garotos bem produzidos. Alguns ainda defendem isto como “cultura nacional”. Ora, a questão é bem mais complexa do que esta. Lembro sempre a história contada por Galeano sobre Portinari. Militante do PCB, o grandioso pintor foi consultado pelos camaradas, que queriam sua aquiescência, seu nome na campanha a favor da arte realista. Sem muito arengar, nosso gênio, fumando seu charuto respondeu de forma simples: – Para mim é arte, ou é merda!
A questão da memória, da identidade cultural é muito mais complexa do que um nacionalismo infantil que beira à histeria e o fanatismo. É a questão de valorar e preservar tesouros, patrimônios que se não forem cantados e recantados pelas novas gerações virarão apenas fonogramas no MIS (Museu da Imagem e do Som). Memória não pode ser apenas pequenas homenagens em centros culturais. Memória é “Carinhoso” e “Asa Branca” sendo cantados geração após geração. Memória são os meninos da Mangueira aprendendo o batuque, a cadência e o samba, não só os da Escola que vão para a Avenida, mas os sambas deste imenso caudal, desta torrente que é Mangueira. Os sambas de Cartola, Nélson Sargento, Padeirinho, Herivélton Martins, Geraldo Pereira, Wilson Batista, Nélson Cavaquinho, Guilherme de Brito e todos os outros feitos baixo o pendão da verde-rosa.
Memória é o “Encontro da Família Portelense”, acontecimento que mudou a lógica das escolas de samba no Rio de Janeiro. Memória é os portelenses e não portelenses irem para a quadra da Velha Águia escutar os sambas de quadra que estavam caindo no esquecimento. É a juventude poder ver a velha guarda cantar e dançar os sambas de Zé Kéti, Paulo da Portela, Argemiro, Nonato, Casquinha, Monarco, Mauro Diniz, Jair do Cavaco e tantos grandes portelenses, recuperar o sentido de ser da escola de samba, a confraternização e a criação de arte dentro da própria escola. É ver o filho de Cabelinho, grande passista, entoando os sambas que já têm mais de meio século, é a transmissão da herança cultural, a criançada começar a cantar o velho para poder criar o novo. É mostrar que o que é velho não é ruim, que esta dicotomia entre o velho e o novo só serviu para nos tornamos bobos da corte sem memória. Com vergonha de festa junina e com orgulho de Halloween. É ficar babando ao ver tia Eunice e Surica soltando aquelas vozes que parecem terem sido trazidas ontem d´África nos navios negreiros.
Memória é bem mais amplo do que um nacionalismo babaca, mas está intimamente relacionado ao reconhecimento de que fazemos uma cultura de qualidade. É saber distinguir o joio do trigo, Vavá de Zeca Pagodinho. Enquanto o Vavá, produto de mídia, menininho enfeitado nos salões da beleza e nas academias de ginástica, nada canta e chega ao besteirol de dizer que o samba de raiz acabou, cai no lixo da história e foi esquecido com a mesma velocidade que galgou o sucesso. Zeca Pagodinho é a antítese disto tudo. Ele conseguiu galgar o sucesso não pela mídia, mas apesar da mídia. Criado nas tamarineiras do Cacique de Ramos, parceiro do falecido e saudoso Beto Sem Braço; irmão de fé de Sombrinha, Arlindo Cruz, Almir Guineto, Mauro Diniz; Zeca é a síntese do que há de melhor no samba de raiz, no pagode verdadeiro, nas rodas de samba que insistem em cantar nossa memória. Rodas que brotam como cogumelos após a chuva e que rememoram João Nogueira, Roberto Ribeiro, Clementina de Jesus, Clara Nunes, mantêm o samba popular e o recriam, na dialética de evolução que parte do velho para criar o novo, em que pese a cara feia que os intelectuais puristas fazem a este tipo de samba. Talvez eles estejam esperando toda uma geração de bons sambistas morrerem para poderem reconhecer, no futuro, nas cátedras assépticas das universidades o valor que toda uma geração do samba de raiz teve, não só esteticamente, mas como foco de resistência. Como dizia a música que foi uma verdadeira bandeira: “Podemos sorrir, nada mais nos impede, não dá para fugir desta coisa de pele, sentida por nós, desata os nós, sabemos agora, nem tudo que é bom vem de fora”. Não dá para se ter dialética, evolução em cima do nada. Quem não sabe a que cultura pertence não pode criar algo realmente novo que tenha conteúdo e referência. Pagodinho furou o cerco da mídia e consegue ser o mensageiro de gente com Serginho Meriti e Candeia. Ele faz sucesso não pela mídia, mas contra a mídia.
A memória é uma questão política, é uma questão étnica, de referência. Veja a verdadeira guerra que os cultos pentecostais, de influência estado-unidense abriram contra os terreiros. Tudo que soa à negritude agora passou a ser pecado, do diabo. Assim, o matiz mais criativa de nossa cultura – aquela que nos legou a cozinha e o som, que resistindo nos terreiros foi capaz de dar a plataforma para uma verdadeira cultura brasileira (tão criativa é a raiz africana que Picasso foi buscar nas máscaras de guerras africanas os motivos do cubismo) – agora passa a ser perseguida. Chegamos ao cúmulo de ver, numa emissora de TV dominada por um pastor, a novela escrava Isaura sem Candomblé. Como se a música, os cultos, os falares, tudo não fosse a força que manteve e possibilitou a resistência. O quilombo não foi apenas o foco da atividade econômica livre de Palmares. Foi o local onde o negro pôde ser. Pôde cultuar seus deuses, falar sua língua, dançar e cantar aquilo que era seu. De uma hora para outra estamos passando por um verdadeiro FASCISMO CULTURAL, onde o negro pode ser admitido na sociedade, desde que embranquecido.
E não pense que é só a direita que quer o negro embranquecido não. Circula pela net um texto que diz que no dia nacional da resistência negra lutar pelo negro é lutar pela igualdade econômica, é fazer oposição ao governo Lula. Desculpem-me os companheiros, mas há um equívoco enorme nisto. Não, não é lutar contra o preconceito racial simplesmente lutar pela igualdade econômica, nem lutar contra o governo Lula (e nem vou entrar na polêmica sobre o governo Lula) é lutar contra o preconceito racial. Mesmo que haja uma sociedade socialista a questão da negritude não estará resolvida neste país. É muito triste ver que no fundo a esquerda NEGA A QUESTÃO ÉTNICA EM NOSSO PAÍS. A partir de um palavrório pseudoprogressista de que somos apenas uma raça, apenas uma espécie. Sim, isto é uma grande verdade, mas e daí? Onde se chega com esta conclusão? A de que basta a luta econômica? A questão da etnia é algo que não pode ser varrido para debaixo do tapete. Sem se basear em preconceitos biológicos é fácil ver que há diferenças culturais concretas. Ora, qualquer projeto, seja socialista, seja liberal, que não leve em conta estas diferenças, no fundo quer conservar o modus vivendi branco europeu. O socialismo por si só não vai resolver a questão étnica, a questão de respeito à cultura africana. No dia Nacional da Consciência Negra não se pode festejar Zumbi só como líder político. Deve se festejar o quilombo como portador de UMA ALTA CULTURA TÃO IMPORTANTE E MAIS AVANÇADA EM DETERMINADOS ASPECTOS DO QUE A EUROPEIA. É fundamental na luta pela memória enfrentarmos a questão do matiz negra do nosso ser brasileiro. Negar esta discussão em cima de uma suposta “democracia racial” na verdade é perpetrar, eternizar a vergonha com relação à cultura negra, a ideia preconceituosa de que ela é uma espécie de “folclore” que deve ser cultuada em determinado dia e depois esquecida, já que temos coisa mais importante a discutir.
Não há possibilidade de qualquer projeto de povo, de nação, sem que consigamos nos analisar, sentarmos numa espécie de divã coletivo e superarmos nosso complexo de vira-lata. Dentro desta análise, reavaliar o matiz e a matriz negra que é fortíssima em nossa cultura é fundamental para um projeto autônomo. Ora, pensemos todos juntos, por que a periferia quando quer protestar necessita de um passaporte estado-unidense para fazer música. Vai buscar nos EUA, no Rap estado-unidense, um modus vivendi, em lugar de utilizar a cultura ancestral do samba? Será que é a eterna mania de copiar, já acusada por Sérgio Buarque de Holanda, ou é manutenção do complexo de vira-latas? Ora, cultura negra para ter valor tem de ter selo made in USA. Em que os meninos do Brooklin se avantajam a Candeia? Nele havia todo um projeto embrionário de revalorização de nossa negritude e a possibilidade de a partir dela construir uma resistência: “Eu não sou africano. Nem norte-americano. Ao som da viola e pandeiro. Sou mais o samba brasileiro”. Isto não era negar a matriz africana do samba, mas dizer que no samba já havia algo mais, a síntese brasileira, o reconhecimento do valor da cultura popular. Dentro desta visão ele chegou a criar uma escola de samba diferente, a Quilombo, que tinha toda uma ideologia de resistência.
A questão da memória carrega consigo, está grávida das questões de solução da vida do povo brasileiro. Não pode haver autonomia nacional sem autonomia cultural. Não há projeto político possível de Brasil sem projeto cultural autônomo. Qualquer projeto de nação que fique no economicismo está fadado ao fracasso. Na jovem república espanhola havia todo um projeto de cultura popular. Alguns poetas, como Antônio Machado, foram assassinados por sua militância política. Frederico Garcia Lorca, talvez o mais genial deles todos, foi assassinado por sua militância cultural. Sem nunca ter realmente se declarado republicano, seu teatro popular, sua ânsia de levar a cultura a todo povo, e também de proclamar a cultura multifacética de todos os povos da Espanha, tornou-se perigosamente subversiva para os bandidos fascistas.
Todas as ditaduras, as declaradas, e as econômicas, como a nossa Ditadura da Imagem Única, são inimigas de qualquer projeto de autonomia e de valorização cultural. A memória só pode ser evocada como coisa bizarra ou pitoresca, como folclore. A maneira de começar a ferir de morte a Ditadura da Imagem Única (que uniformizou o jeito de pensar, sentir, fazer, se vestir, escutar música, comer) é nos reconhecermos como seres biodiversos, filhos de uma outra cultura não hegemônica, empreendermos a grande aventura de resgatar esta cultura que está sendo, dia após dia, relegada ao esquecimento. No dia que não tivermos mais memória, não haverá mais projeto de autonomia para o nosso país. Nossa memória é nossa esperança. Mas não uma memória passiva e inútil, fossilizada. Uma memória viva e criativa, que canta e dança, que cria um novo a partir de sua caudalosa e profunda raiz popular.

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