segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A Inquisição Vermelha


Figura: Edgar Vasques para Ideias em Revista, revista do Sisejufe

Giordano Bruno queimou na fogueira por, dentre outras coisas, acreditar que a terra gira em torno do sol; que o inferno não existe; por pregar a tolerância, inclusive a religiosa entre os homens; a política laica, sem intervenção da religião, que passa a ser coisa privada; a universalização do ensino sem dogmas e sem monopólio do “saber” pelos eruditos. Isto não foi ontem, mas há mais de 400 anos. É comumente venerado pela esquerda, e sua tradição de pensamento tolerante e anti-obscurantista nos faz colocá-lo ao lado de uma tradição iluminista que irá desaguar, por fim, com a dialética materialista, em Marx.
Mas, porque evocar Bruno num texto com o enigmático título de a Inquisição Vermelha? Talvez para cobrar da esquerda uma posição mais coerente e para desfraldar sua bandeira como uma forma de resgatar a discussão sobre a tolerância, a secularização da política, o uso da razão em lugar da fé, a luta contra o dogmatismo, a luta contra o fanatismo, contra a meritocracia dos títulos acadêmicos que deixa o saber recluso para poucos... Não, não estou falando do Brasil no século XXI, mas da Veneza da Europa do fim do século XVI. Olhando para o Brasil de hoje, faz parecer muitas vezes que andamos recrudescendo para uma nova era das trevas, tal a intolerância e o obscurantismo das discussões, inclusive as políticas, mesmo entre a esquerda.
A esquerda tem de celebrar e recobrar o que há de mais generoso e progressista nela e não o que há de mais obscuro e irracional. Temos que aprender com nossos erros tanto quanto com nossos acertos. Temos que aprender com as lutas de libertação dos povos oprimidos e com as revoluções vitoriosas, mas temos que aprender também com os equívocos, como os gulags e os processos de Moscou, os execuções da “Revolução Cultural” chinesa, Pol Poit, a dinastia “socialista” da Coréia do Norte... Uma tradição falsamente “maquiavélica” (Maquiável nada tem que ver com isto) da esquerda, nos levou a tolerar atos de opressão desenfreada e de total obscurantismo numa lógica torta do “mal menor”, que de menor não tem nada, haja vista que a incorporação pela de esquerda de elementos estranhos e nocivos a seu pensamento nos faz perder a luta por corações e mentes, que se trava diariamente no mundo moderno, contra um inimigo sumamente poderoso, o capitalismo imperialista.
Uma tradição míope que faz determinadas correntes de esquerda apoiarem o fundamentalismo islâmico acreditando que a futura revolução socialista nascerá da Jihad e se calando contra a intolerância e a desvalorização da figura da mulher, que muitos destes movimentos, que são antiestadounidenses carregam. A lógica é perversa, é pervertida. E fica igualzinha á lógica do imperialismo norteestadounidense que defende os seus ditadores, quando lhes convém, e ataca a democracia quando não lhes é interessante. O caso mais ilustrativo é o do Talibã. Quando combatiam os soviéticos, ajudando o Talibã, um governo fundamentalista, de intolerância e obscurantismo, aí eram os queridinhos da CIA e os inimigos da esquerda. Quando passaram a inimigos dos EUA, teve muita gente da esquerda mandando e-mail saudando a resistência Talibã, mandando não, corrijo, tem muita gente que continua a defender.. Peraí, camaradas, resistência do que contra o que? Do imperialismo islâmico contra o imperialismo estadounidense? A causa em si sumiu. A secularização do ensino, a libertação das mulheres, a separação da religião e do Estado, que existiu no curto período de governo socialista afegão, a causa em si, pela qual vale a pena lutar, desaparece. Tudo se limita então se o governo X é contra ou a favor dos Estados Unidos. Tem gente da esquerda até hoje fazendo apologia de Saddan Hussein! O assassino de curdos e opositores, inclusive de esquerda. Na mesma ótica míope dos EUA. Quando Saddam era amigo dos Estados Unidos, era nosso inimigo, virou inimigo dos EUA, então valia à pena sua defesa. É lógico que se devia defender a ilegitimidade da invasão estadounidense no Iraque, e que o povo iraquiano decidisse seu próprio destino, sem a intervenção dos mariners. Mas desta posição a defender Saddam vai uma distância apocalíptica.
Sou completamente a favor da luta dos palestinos por uma terra sua, luta justa e anti-imperialista. Mas transformar esta luta, em que vários grupos dentro da Palestina se engalfinham entre si, numa luta socialista, é uma tremenda fraude histórica. Na luta contra o imperialismo israelita e contra o Estado de Israel (e não contra o povo israelense ou contra os judeus) há uma grande divisão de grupos e propósitos. Há desde grupos progressistas e com visões laicas, que defendem um território comum para palestinos e israelenses, até grupos que defendem a guerra santa contra os infiéis, os costumes medievalistas, o retorno a idade das trevas, o machismo como política de estado sancionado pela religião, a discriminação contra as mulheres falsamente calcados no corão. E não me venham acusar de ser anti-palestino ou não entender a diversidade cultural, que é o que mais comumente, aqueles que fazem a defesa do indefensável, argumentam para defender suas posições. Fundamentalismos tem de ser combatidos, sejam cristãos, muçulmanos, budistas ou de que religião for. Não há base crível em nenhum livro sagrado para o sexismo e a segregação das mulheres, ou para a intolerância religiosa. Mas efetivamente em alguns dos grupos que lutam contra Israel, a base teórica que os movimenta é uma esta perigosa salada citada Por uma falsa defesa da “diversidade cultural”, alguns intelectuais de esquerda não criticam as bandeiras destes movimentos porque devemos ter a “mente aberta” para o orientalismo. É algo absurdo, de maneira nenhuma o fato de movimentos reacionários serem anti-estadounidenses nos deve cegar para o fato de que estes movimentos são... REACIONÁRIOS! Se fossem vitoriosos nas lutas que travam não trariam felicidade para seus povos, trariam, como fizeram no Afeganistão, despotismo, tirania, crueldade e intolerância. Mas há grupos e partidos no Brasil que de maneira torpe fingem acreditar que movimentos com bandeiras de guerra religiosa podem garantir o FUTURO SOCIALISTA DA HUMANIDADE... Estranha dialética. Como falava o Barão de Itararé, de onde menos se espera é que não sai nada mesmo. Na Palestina se trava uma luta pela independência de um povo, e a única bandeira factível e justa é a de dois Estados e duas nações, laicas, para que judeus (que têm todo um histórico de serem perseguidos sim e não podem ser apagados como nação e como Estado – o que de outro lado não justifica a política de PROGROM DO ESTADO ISRAELENSE CONTRA OS PALESTINOS – e não do povo israelita, sempre separar para não cairmos no anti-semitismo) e palestinos, em estados seculares e livres, possam levar suas vidas sem guerra, para que as mulheres não sejam segregadas em nome de um Estado falsamente inspirado em princípios “divinos”.
Saindo desta questão factual, o que pretendo chamar atenção é para o caráter de seita (e daí o nome de sectários) que certos grupos políticos adquiriram no Brasil. Pretendem deter o monopólio do saber de esquerda. Eles é que conferem atestados e certificados de pureza “esquerdista”. Só podem ser considerados de esquerda, socialistas e, ou marxistas aqueles que rezam na sua cartilha ou são aliados, ainda que temporariamente. Assim, todos aqueles que fogem da “pureza” das suas concepções, estão relegados ao fogo do inferno não-marxista. São traidores, pelegos, governistas, direitistas, stalinistas, burocratas, revisionistas, e mais quantos termos podem inventar. Estas seitas de esquerda funcionam exatamente como determinadas seitas evangélicas. Vivem à parte do mundo, o mundo real não existe. Se a conjuntura não concorda com minha análise, dane-se a conjuntura, se o mundo não coincide com meu pensamento, dane-se o mundo. Com seus atestados de pureza marxistas concedidos apenas àqueles que rezam em suas bíblias, estas seitas gastam mais tempo atacando àqueles que foram excomungados de seus ritos (ou seja, a própria esquerda) do que preocupadas com a elite, com a direita, com a burguesia; com o mundo real. Só sabem fazer política na negação, até porque não conseguem construir nenhum projeto político sério. Se reduzem a difamar as outras correntes de esquerda e provar a seu próprio grupo de fiéis, que a sua igreja, do Perpétuo Marxismo dos Últimos dias, é a única que é inspirada pela divina trindade, Marx-Engels-Lenin, além do grande profeta, Trotsky, é claro. Gastam todo o tempo útil de militância patrulhando ideologicamente a esquerda que não foi bendita por seu evangelho e tentando destruir as organizações de esquerda construídas por década de militância, como a UNE e a CUT. Demonizam os movimentos reais de resistência latino-americana, como Chávez e Evo, se aliam e comemoram vitórias com o DEMO e os tucanos. É a esquerda tresloucada que a direita ama. E tem uma mentalidade protofacista que assusta. Agressivos e intolerantes, não toleram a discussão ou a democracia, esta só vale quando eles têm maioria. Quando são derrotados, na discussão ou no voto, tentam bagunçar os processos eleitorais e acusar de golpistas todos aqueles que os conseguem derrotar. Aliás, golpista é o termo mais tranquilo, em geral, todos os que lutam contra eles são canalhas, bandidos, vendidos à burguesia ou coisas do tipo. Do marxismo, só aprenderam os insultos, não a tolerância e a convivência respeitosa. Lêem pouco ou quase nada, e transformar o materialismo dialético, ciência e método, numa liturgia sagrada onde não cabe a dúvida e a inquirição. Escondem sua ignorância da luta real e dos desejos do povo numa meritocracia de diplomas de mestrado e doutorado que conferem uns aos outros em estudos importantíssimos do tipo: A pureza e a virgindade do marxismo de Lenin; As relações entre o sexo dos anjos e a discussão das seitas marxistas no pós-modernismo do século XXI. Tem medo da discussão real e do confronto com a realidade, por isto querem a universidade para poucos e pretendem se fechar em feudos, dizendo que massificar o ensino superior faz com que “caia a qualidade do ensino” (nisto fazem coro com a burguesia da Barra e do Morumbi!). De novo chamo Bruno em meu socorro, enquanto ele censurava o enclausuramento do ensino e a meritocracia, com o ensino das universidades poucas da época sendo destinado só aos doutos e pregava a abertura dos muros, nossos heróis das seitas dos Marxistas dos Últimos Dias são como os doutores da época da insquisição, que temem o povo na universidade, mas ainda assim se dizem de esquerda e pretendem falar em nome deste mesmo povo...
Vivem num mundo próprio, só se reproduzem com os que militam na mesma seita, estão longe do povo e de suas lutas reais. Por esta razão sobrevivem como quakers que cuidam da pureza de seus ritos e proibições, por isto nunca chegam a congregar nem 0,5% do eleitorado, mas, ainda assim, se jactam de suas próprias construções artificiais e de esperar a volta do Rei Dom Sebastião, quero dizer, Lênin, que em seu reluzente cavalo vermelho nos salvará a todos do diabo revisionista. São a esquerda que a direita ama e adora, a esquerda pela qual a direita reza todos os dias em suas preces, para que Deus os preserve deste jeito, mas como aliados dos conservadores, do que como lutadores do povo. Uma esquerda inquisitorial e intolerante, que afasta a qualquer um que queira sonhar com um mundo melhor e socialista.

Nenhum comentário:

Postar um comentário