sexta-feira, 17 de junho de 2011

A caverna

A Caverna

Desde que foi decretado pelo Estado oficial que a natureza era uma inimiga a ser desbravada, conquistada e ferida, os homens se recolheram a uma imensa caverna. Todos tinham, em seus lares, uma grande tela chamada de tele-inversão, onde podiam ver o mundo. Tudo era fabricado, os cheiros, os sons, os gostos, os ídolos, as práticas, os carros, muito carros, barulhentos, fumegantes, algumas pessoas tinham vários, era o símbolo do sexo e do poder. E celulares, gritantes, estridentes, desnecessários, as pessoas andavam com os celulares todo o dia, e falavam neles, falavam muito, mas muito mais do que falavam ao vivo, olhando nos olhos, que agora eram todos azuis, graças as diversas lentes que escondiam as descendências sempre mestiças renegadas, desapareciam nos olhos.
Era um mundo novo, da imensa democracia “universal”. Uma democracia onde o grande poder era o de consumir, havia eleições periódicas, onde, com muito dinheiro o povo miúdo e pobre escolhia o ricaço que lhe daria a corda com que se enforcar.
Nesta sociedade nascera um menino, de nome Demócrito. Ele recebera seu nome do filósofo grego. Seu pai fora expulso da caverna há dezenas de anos atrás e acabou por morrer, feliz, apesar de estar longe da família, no exílio, pois fora da caverna era a liberdade. Isto ele escrevera sempre ao filho, embora pouquíssimas cartas houvessem podido chegar.
Os amigos de Demócrito ridicularizavam-no. Não havia realidade fora da caverna, o mundo era plano e fora dele era só abismo, tristeza, pobreza. Não havia supermercados, nem shopping centers, nem celulares, nem computadores, era o abismo o infindável vazio. Demócrito não acreditava. Ele cria que fora daquela caverna insuportável, onde os homens eram classificados de acordo com o valor depositado na conta corrente, havia um mundo. Redondo, com cheiro de plantas e frutas. Com selvas e rios, com outras cores, que não fossem estas da tele-inversão.
Estas eram idéias perigosas, só os selvagens, chamados de índios e os comuneros criam nisto, mais ninguém. Os selvagens viviam à margem da caverna, comendo com as mãos, num estágio primitivo e aterrador, era impossível viver com eles. Los comuneros eram uns sanguinários, desacreditavam em tudo que era compulsivo, no casamento compulsivo, no trabalho compulsivo. Ousavam discordar da tele-inversão e propunham outra realidade, onde as pessoas valeriam pelo que eram. Mas, o que é uma pessoa, senão seus carros, seu cartão de crédito, sua tele-inversão da realidade, senão seus celulares, senão sua conta-bancária? O que? Estas idéias perigosas acabariam com a tranquilidade e a beleza da sociedade da caverna. Sentir o vento? O vento tinha bactérias e micróbios, havia um super ar-condicionado gigante garantindo o sustento de toda a caverna, ar esterilizado, puro. Para que sentir brisas, ventos e outros inconvenientes da natureza se este gigante do mundo moderno podia nos tirar do estágio de selvageria e barbárie?
A música era tecno, melhor, tecno-brega. Roupas grudadas de plástico, de couro, de outros tipos. Era industrial como esta sociedade, aliás, até o amor era industrial, esterilizado, pasteurizado, enlatado, louro e artificial como tudo. Louras rebolativas cantavam as partes do corpo feminino como postas de carne expostas em açougues. Aliás, depois de celulares e carros, nada como possuir uma loura. Era uma demonstração de status na caverna, ainda que a loura fosse falsificada (90% dos casos). Descendentes de índios, negros e etc, não eram muito bem-vistos nesta sociedade tecno-brega. Aí era um festival de índias louras, de negras louras, de morenas louras, de preconceitos politicamente corretos, mudos e eternizados. Também havia os garotinhos de roupas grudadas e partes pudicas dependuradas nas novas revistas de venda de sexo, agora rebatizadas de “magazines de nu artístico’.
As crianças eram super-gordas (as que não eram pobres e famintas) e comiam seus venenos no mac-caverna do momento, o big-caverna, o big-bobagem, o big, pig, chicken ou qualquer coisa em inglês, que era uma mostra de cultura. Afinal, na caverna, quem entendesse pouco ou nada de inglês era considerado pouco ou mais do que um selvagem, embora pouquíssimos fossem descendentes de anglo-saxões.
As pessoas não sofriam mais, porque o sofrimento era algo “out” não “cult”. A tele-inversão pensava por todos. Não havia excluídos, apenas os “colaterais”. Uma criança comendo lixo, era um colateral, uma necessidade da opulência, no máximo um azarado, algo extremamente suportável, na verdade, com o tempo, ninguém mais via as crianças comendo lixos. Todas as crianças, dizia a tele-inversão, já tinham ido na nova Disney-caverna, que era a maior demonstração de carinho e felicidade que os pais podiam dar a seus filhos.
Não havia guerras, apenas patrulhamentos da nova polícia internacional da Grande Águia, que dominava tudo e era dona da verdade, afinal dominava todas as mais importantes tele-inversões do mundo. Era a democracia da verdade única. Rapazes e moças bem bonitos e arrumados, no jornal da noite, davam a verdade do dia-a-dia. Bombas caindo em algum lugar da caverna eram danos colaterais, protótipos inteligentes de alguma guerra clínica, para o que a tele-inversão fazia a lobotomia da sensibilidade de todos, aliás, sensibilidade era algo profundamente “out”, fora de moda, assim como a solidariedade. O lema era cada um por si, e Deus contra todos.
Demócrito não acreditava nisto. Era sensível, era solidário. Não tolerava sequer mais a Ditadura da Imagem Única da tele-inversão, e queria sair portão afora, para ver o mundo, coisa que não era permitida.
Um dia conseguiu fugir. Seus olhos, acostumados à iluminação artificial, ardiam, seus pulmões se encheram de ar puro, cheios de odores de flores, nos ouvidos, zumbidos de abelhas, pios de passarinhos, sons de um rio próximo. Ele não acreditava, era impossível. Um rio!!!! Na caverna só havia valões, que foram cobertos por serem sujos, mal-fedidos e cheios de sujeira e esgotos. Era uma outra vida.
Tinha medo também, era jovem e ouvira falar que os comuneros matavam por puro prazer e obrigavam as pessoas que saiam da caverna, que saiam do sistema a orgias. O medo de encontrá-los era grande, pois eles dominavam algumas áreas do mundo fora da caverna, as que não eram super-patrulhadas pelos mariners da Super-Águia. Ela não cria nos seus próprios olhos. Era isto que a ditadura da imagem única queria negar? Frescor, luz, sol, natureza, a própria essência da humanidade.
Andou e sentiu fome. Pegou mangas, era a primeira vez que as comia assim, direto da árvore. Acabou por encontrar uma pequena tribo de índios. Tremeu, a primeira coisa que lhe veio à cabeça foi: selvagem, antropófagos. Mas a curiosidade foi maior. Acabou por se chegar, e foi bem-recebido. Eles falavam outro idioma, mas, havia alguns na comunidade capazes de falar com ele, pois tinham tido contato com o mundo da caverna.
Demócrito viveu meses ali. Descobriu um novo sentido. Uma solidariedade diferente. Eram estes os selvagens? Não havia ricos, e nem pobres, nem hipocondríacos, nem alcoólatras, nem deprimidos, nem órfãos ou viúvas desamparadas, nem existiam os “não incluídos”. Havia um sentido coletivo novo, e pela primeira vez na vida, ele sentiu na prática que a felicidade é um bem comum, que os homens são partes de uma mesma essência. Perdeu o tênis da moda, e nem se importou. Seus pés se afundaram no lodo dos rios e redescobriu nadar, pescar, dançar e até amar. Não que ele fosse virgem antes de chegar ali, mas descobriu um sexo sem culpas e sem medo, de entrega e sem submissão, uma visão natural e diferente da sexualidade, onde não havia compulsão e nem se usava a relação como um jogo de poder. Estava encantado e tinha vontade de viver ali para sempre.
Aprendeu deuses outros, que eram pássaros, que eram árvores, que eram cantores, sol e lua, mata e rio. E descobriu que a capivara era sua irmã, que a ema era sua irmã, que o veado era seu irmão. E não achou que estes deuses da mata fossem demônios, ao contrário, viu nestes deuses tanta verdade quanto em Cristo e sua pregação de amor pelo próximo.
Com o tempo sentiu a necessidade de sair dali e retornar à caverna. Quando pensava nisto chegou um comunero para se esconder na aldeia. Foi bem aceito, já estivera ali antes, e havia ajudado os índios a organizar sua resistência, pois não apenas uma vez havia sido arrasada a aldeia, com dezenas de mortos a sujar a história da moderna civilização da super-caverna-globalizada-da-imagem-única.
Teve medo, a idéia que tinha do comunero era péssima. Um dia foi suficiente para aproximá-lo daquele militante comunero. Soube de verdades então que jamais pensara antes. De como a sociedade da caverna poderia ser outra, livre, amante da natureza, sem o trabalho compulsivo, com tempo de sobrar para viver, curtir a natureza, dançar, cantar, sentir o prazer de viver e estar aqui, e a necessidade dos que sabiam desta possibilidade era a de espalhar isto como um evangelho.
Demócrito ficou mais um mês na tribo, aprendeu muitas coisas, recebeu uns livros do velho militante e os devorou, acreditava estar pronto para retornar à caverna e cumprir sua promessa de abrir os olhos de quem pudesse.
Para voltar a caverna contou uma história que se perdera. Foi recebido como um herói que sobrevivera à sanha de ficar seis meses em poder de selvagens. Na primeira entrevista dada em rede internacional à tele-inversão ele começou a falar a verdade. Da necessidade da natureza, do homem se reencontrar com sua essência, de descobrir sua alienação em relação a si mesmo, aos outros semelhantes, de se libertar, não como um processo de uma pretensa liberdade de se fazer coisas inúteis, mas como uma descoberta das amarras que nos prendem em nosso caminho rumo a uma realidade diferente e digna, e da superação destas cadeias. Nunca mais foi chamado à tele-inversão. No dia seguinte todos os principais jornais do grande mundo da super-caverna tinham editoriais feitos pelo Partido da Imagem Única que ridicularizava e depreciava a fala deste dinossauro, que pretendia que a caverna regredisse e voltasse a ser uma sociedade pouco melhor que de índios pré-civilizados. Como abrir mão da miséria na abundância, do homem ser lobo do próprio homem, da competição com cada um apertando o pescoço do próximo, vendendo a mãe e matando o pai por um degrau na escada dos desesperados? Era impossível, outra sociedade que não fosse esta, era natural, era só ver na natureza, o leão devorando a gazela, esta era a lógica, poucos com muito e muitos com nada, a desigualdade se justificava. Não houve, é claro, nunca direito de resposta.
Demócrito publicou alguns panfletos, cerca de 400, o jornal de menor circulação, da Ditadura da Imagem Única teve uma tiragem de 500 mil. Passou a ser o inimigo n.º 1 da caverna. Falava dos pobres e dos lixões, falava da mentira e do monopólio da informação, falava de utopia e beleza. Um dia, como um mártir louco, pregava ao sol escutado por muitos jovens que começavam a abrir os olhos com sua semente. O tiro partiu, certeiro, de um para-militar desconhecido, na cabeça, para parar um cérebro que ousara discordar. Ele caiu, morto...
No dia seguinte, apareceu num muro (a forma de propaganda dos dissidentes da verdade única)
Demócrito vive...
Que nos persigam...
Que nos prendam...
Que nos matem...
Ainda assim voltaremos, e logo seremos milhões!!!!

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