quarta-feira, 29 de junho de 2011

Menino de Rua eu fui


Menino de Rua

Era uma vez um tempo de pardais, de lampiões de gás
Onde ainda havia fadas
No Bonde havia um anjo para guiar, outro pra dar lugar (...)
Veio o Marquês de uma terra então perdida
E mais uma vez se fez dono da vida
Mandou plantar cem dúzias de avenidas para sepultar de vez as margaridas – Paulinho Tapajós

Fui um menino de rua, não nesta acepção feia que a palavra tomou hoje, de crianças que não têm lar para onde voltar, ou quando têm, não podem chamar aquilo de lar e optam por ficar na rua, ao relento, a sofrerem toda sorte de violência doméstica. Quando eu era criança, a crise que se abate sobre nós ainda não tinha condenado milhões de crianças a este epíteto de “criança de rua”, havia pobreza, mas não esta quantidade de meninos vagando pelas cidades. Criança de rua é uma expressão absurda, nenhuma criança é da rua, estas crianças estão na rua, a nossa indiferença e nosso descaso as jogaram lá. Não é a pobreza que as condena à rua; Cuba, um país pobre tem uma frase, escrita no aeroporto de Havana, que sempre me arrepia, HOJE MILHÕES DE CRIANÇAS DORMIRÃO NAS RUAS DO MUNDO, NENHUMA DELAS É CUBANA.
Isto explicado, insisto que criança de rua fui, numa outra acepção, de criança brincando ao vento despreocupada, com outras dezenas de crianças da vizinhança, cujos pais não sofriam os terrores e as neuroses dos dias de hoje. Não havia esta “guerra do tráfico”, esta preocupação neurótica com violência, notícias de pedofilia, de rapto de crianças. Nossos pais nos deixavam a brincar na rua, as crianças tomando contas umas das outras, com quase nenhum medo. Afinal, à época, morava na Baixada Fluminense, num bairro em que os carros contavam-se nos dedos, os perigos para uma criança eram: rasgar o pé em um caco de vidro por correr descalço, cair da laje soltando pipa (este um perigo um pouco maior), tomar uma picada de marimbondo, brigar na rua e voltar com um olho roxo (correndo o risco de apanhar de novo em casa)... Nada das desgraças do mundo moderno, nada dos pesadelos que assolam os pais hoje em dia. A vida das crianças pobres (e não miseráveis) era uma vida boa, umas acompanhando as outras nas brincadeiras de rua.
E agora me dá uma grande angústia ao perceber que, talvez, minha geração tenha sido a última geração de crianças de rua, de crianças criadas na rua, correndo ao vento, colhendo fruta, jogando bola com o pé descalço, brincando de pique, jogando pelada e chutando o chão, chutando lata, chutando tudo que fosse compatível com uma bola. Comendo goiaba, comendo amêndoas, comendo cajá, comendo jambo, comendo carambola, chupando cana, na maioria das vezes, roubado da casa do vizinho, o que dava um tempero bem mais saboroso... Uma geração que aprendeu na rua muito mais coisa que imaginassem podíamos aprender. Aprender a ser gente, a compartilhar, a repartir, a ser solidário, a vida em comunidade, a ser humano sendo outros, a chorar, a consolar e ser consolado, a brigar junto, a fugir junto, a criar laços e comunidades, a se preocupar com o outro. Aprendizado não teórico, que levo no fundo da minha alma até hoje. Por mais que os anos passem, por mais que estude, que aprenda, que me aperfeiçoe, que ganhe diplomas, nada mais sou que uma criança da Baixada Fluminense, eu saí da rua da minha infância, mas as ruas da minha infância, tudo que aprendi nelas, não saíram e não vão sair de dentro de mim até a morte. Serei sempre, graças a Deus, até o suspiro final, o menino de uma rua da Baixada Fluminense.
As crianças de rua, nos dias de hoje, foram substituídas por crianças de apartamento, videogame, jogo em rede, internet. Uma geração robotizada e individualista, presa no medo (justificável ou não) dos pais, que temem a violência, que trabalham demais porque temem perder o emprego, que temem que os filhos sejam raptados, sejam seviciados, que hiperprotegem uma geração que vai mais e mais e mais e mais e mais se individualizando, se educando pela TV, pelos chats, pelos jogos em rede, pelas lan house e cada vez menos pelo cheiro da fruta, pela carícia do vento, pelo nascer do sol, pelo nascer da lua, pela chuva no rosto, pelo futebol na chuva, pelo pique-esconde.
Medo da violência, medo do contato humano, casas cada vez mais prisões, condomínios cada vez mais fechados, próximos cada vez mais distantes, gente cada vez mais desumanizada ao nosso olhar. A geração Xuxa realmente teve infância? Quando eu era menor eu não tinha tempo para assistir TV, a rua me fascinava e prendia. Hoje, o espetáculo ao vivo das ruas, cada vez se afasta mais e mais para as pequenas cidades sem violência, que agora estão cada vez mais distantes de qualquer centro urbanizado, pois as cidades medianas copiam das cidades grandes o medo, o trânsito, a organização de classes das ruas, condomínios fechados onde bens e pessoas ficam trancados em gaiolas de luxo.
Pobre geração criada sem ruas, que sonhos sonharão? A lua em seus sonhos será virtual? Os seus desejos serão expressos no orkut? Suas fantasias expressas no youtube? Estamos criando prisões em nossas ruas e casas, vivendo vidas de condenados perpétuos e condenando nossos filhos às mesmas penas. Precisamos reconquistar a rua e a praça como lugares comuns, arrancar as grades, conversar com o pipoqueiro, retomar aquele sentido comunal, quase tribal que tínhamos em nossas vidas, e olha que esta outra vida, mais humana e fraterna, ocorria não faz muito tempo...

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