sexta-feira, 15 de julho de 2011

A memória


A Memória

O grande sambista Marquinhos de Oswaldo Cruz falou uma frase lapidar, que trago guardada como uma adaga: “cultura é aquilo que a gente escolhe para ficar na memória”. Uma verdade tão simples e extremamente complexa, contraditória, dialética em movimento. Numa entrevista que ele havia concedido para o jornal do Sindicato dos Trabalhadores da Justiça Federal, ele nos disse que Dona Ivone Lara havia mostrado a ele que antigamente chorinho era para dançar. Os músicos iam pelas casas do subúrbio tocando e se faziam bailes com a cadência do chorinho. Esta é uma das coisas que estão extintas, perdidas para sempre, entre outras que nossa cultura plastificada vai condenando à extinção.
A música brasileira é, sem dúvida nenhuma, uma das mais ricas, senão a mais rica do mundo. Nenhum outro povo tem tanta variedade com características intrínsecas tão marcantes, delineadas e distintas entre si. Que país pode ter em seu território samba, congo, marchinha, samba-canção, samba-de-roda, frevo, xote, maxixe, samba-de-breque, bossa-nova, baião, fora uma série de músicos geniais que fogem às classificações. Como classificar “Construção” de Chico Buarque de Holanda, a não ser como música de outro mundo?
Invejo realmente os estado-unidenses (e olha que sou insuspeito para falar dos Estados Unidos, embora não confunda o anti-imperialismo com xenofobia, mas tenho severas reservas à apologia que se faz no nosso país aos ianques) quando vejo a adoração que os negros do jazz e do blues conseguiram. Monsueto, Candeia, Herivélton Martins, Cartola, Zé Kéti, Nélson Sargento, Ismael Silva, Ataulfo Alves e – é melhor eu parar de citar nominalmente, ou este artigo não acabará jamais – todos os outros crioulos e branquelos do nosso samba são tão bons quanto os bambas do jazz. Agora, quantos jovens até os 30 anos de idade já ouviram falar de Candeia?
É um tesouro cultural esplêndido que vai sendo perdido por cair no esquecimento. É mais fácil seguir o liquidificador cultural da globalização. É difícil para quem escutou Candeia e Wilson Batista conseguir ver qualquer graça numa “música” de Gabriel Pensador ou Marcelo D2. Nem a desculpa de que as músicas que eles fazem é ruim porque eles são pobres ou não tiveram acesso à educação musical cola; Cartola era gênio, seus poemas “As Rosas Não Falam” e “O Mundo É um Moinho” são comparáveis a textos de Drummond e Bandeira, suas músicas são tão boas quantos as dos maestros Francis Hime e Tom Jobim e ele era pobre, semialfabetizado. Foi faxineiro, porteiro, lavador de carros, comeu o pão que o diabo amassou, mas nada disto conseguiu calar seu talento e seu gênio.
Primeiro a ditadura militar começou o processo de emburrecimento do país. A perseguição a nossos melhores expoentes levou a que eles fossem substituídos por artistas “neutros”, aqueles que não sabem de onde vêm e nem para onde vão. É sertanejo vestido de caubói estado-unidense, cantando música que nem corno aguenta, é forró universitário que parece ter sido feito por analfabetos de pai e mãe (o forró feito pelos analfabetos, o pé de serra, todavia, era e é genial), é samba mela-cueca, feito com letra e melodia igual, por um monte de mauricinho engomado que mais parecem ter raiva da música. Vale muito mais o visual, a “beleza”, as horas de academia e o empresário do que o talento.
Esta ditadura atual, a burra Ditadura da Imagem Única é bem pior. Ela diz o que devemos manter na memória e o que devemos esquecer. Não há mais avaliação de qualidade, os conceitos são frívolos. O conceito único é o de velho e novo. Novo é o que eles nos disserem que é novo. Assim, o grupo inimigo da música “É o Tchan” pode nos ficar irritando durante anos seguidos com sua perseguição à música de boa qualidade, mas, cada relançamento, feito pela mídia, das louras e das morenas da bunda music era festejado como a “grande novidade”. Enquanto isto, uma grande quantidade de partideiros – que continuam a manter a tradição da música que veio d´África e ganhou corpo nos nossos guetos, nos nossos subúrbios, nossos morros, nossos quintais – foram relegados ao ostracismo ou pasteurizados até ficarem irreconhecíveis e aceitáveis para a Vênus Platinada da Globo.
Mais do que horas no violão, valem as horas na academia. Uma geração emburrecida pelo culto ao corpo usa como totem o som berrante do carro, a xingar todas as mulheres de cachorras, vagabundas e burras, a glorificar os aspectos mais vis da sexualidade. É claro que não faltam “críticos”, muito bem remunerados e com grande espaço na mídia, para defender este atraso, este retrocesso, como o ápice da “liberdade”.
Quando Chico Buarque de Holanda fez 60 anos, o mais importante poeta vivo brasileiro (incluído os que escrevem apenas livros) não teve um único especial em nenhuma rede de televisão. Toda a semana no programa de imbecilização coletiva do “Faustão”, todavia, você podia ver todos aqueles que participam docilmente do sistema de venda por atacado de CDs. Gente sem talento, em quem as gravadoras despejam milhões de dólares para tentar lucrar bilhões. Quem quiser escutar o novo CD do Paulo César Pinheiro (se você perguntou “quem?”, leitor amigo, estás mal, muito mal) vai ter que ficar catando, nas lojas que vendam o selo “Biscoito Fino”. Um dos maiores compositores da história da MPB hoje faz música para 20 mil pessoas. Kelly Key vende dois milhões.
Uma mentira dita mil vezes acaba por se tornar uma verdade. A verdade que a mídia repete é: “o povo gosta de merda, não adianta dar coisa boa para o povo”. Mentira cômoda de quem é tutor e executor de um processo de emburrecimento que já dura 20 anos. Se Paulo César Pinheiro e Chico Buarque tivessem 1/10 do espaço que tem Latino e Kelly Key, eles venderiam o mesmo com muito menos esforço e gasto inútil de dinheiro com propaganda. A maior parte do dinheiro gasto hoje com CDs é na propaganda. As grandes gravadoras sabem que não têm artistas na mão, mas sim criações de mídia, que necessitam de bilhões para se manterem como produtos vendáveis. São produtos, como Corn Flakes e Danoninho, e não artistas. Necessitam de investimentos diários para se manterem vivos. São descartáveis e substituíveis, porque não têm conteúdo nenhum.
Até a década de 60, Chico Buarque vendia tanto quanto Roberto Carlos. Mas imagina como seria perigoso se Aldir Blanc, Chico Buarque, Paulo César Pinheiro, Paulinho da Viola e outros de uma vanguarda cultural fossem os ídolos desta nova geração? Ora, é bem mais cômodo dominar uma juventude que canta “quer dançar, quer dançar, o tigrão vai te ensinar” ou “paga bolete, paga bolete” do que uma juventude que canta “por que beber esta bebida amarga, tragar a dor, engolir a labuta. Mesmo calada a boca resta o peito, silêncio na cidade não se escuta. De que me vale ser filho da santa, melhor seria ser filho da outra, outra realidade menos morta, tanta mentira, tanta força bruta”.
Repito, uma mentira dita mil vezes acaba por se tornar verdade. Não aceite esta coisa da mídia de que o povão gosta de merda. É isto que eles nos querem fazer crer, para levar à frente, sem oposição, este processo de emburrecimento, tendo seus meninos dourados da mídia como ícones da nova geração. Até os “caras-cabeça” são os da oposição consentida. Gabriel Pensador está mais para garoto propaganda da Rede Globo do que para alguém que realmente provoque qualquer dano ao sistema. Nem passa perto das músicas profundas de protesto de um Gonzaguinha.
Assim o sistema de televisão, que é uma concessão de serviço público, mas é propriedade de três ou quatro megamilionários, pode continuar a fazer o que quer com a mente da população, ou um desserviço ao povo. Destruindo a verdadeira cultura popular e substituindo esta por uma série de criações de mercado, que são nocivas à inteligência.
É terrível ver, vira e mexe, especiais relembrando Elvis Presley e outras coisas de qualidade similar, made in USA, enquanto o Jongo da Serrinha fica relegado ao espaço dos teatros e a boa vontade de verdadeiros heróis de vanguarda popular. O processo de recuperação da memória popular não pode ficar restrito a espaços como o queridíssimo Teatro Rival, nós devemos levar esta discussão para espaços maiores. Torná-la um movimento de recuperação de nossa identidade, sem ter vergonha de sermos tachados de xenófobos ou puristas. Esta se tornou uma pecha incômoda e muitos têm medo dela. Defender nossa cultura não quer dizer menosprezar nenhuma outra. Não pode haver cultura INTERNACIONAL SEM CULTURA NACIONAL. “Inter” quer dizer relação entre nações, entre povos. Ora, se todos cantarem Rock, que cultura internacional será esta? Será uma cultura monocromática, enfadonha, sem graça, repetitiva, onde um único pensar, um único modo de ser (o american way of life) é o que pode ser admitido sem ser tachado de velho ou parcial.
Sem xenofobias, estamos abertos para receber Joan Baez, Elza Fitzgerald, Billy B. King e tudo de maravilhoso que a cultura dos EUA tiver para nos legar, mas também estaremos abertos para Violeta Parra, Fito Paez, Vitor Jarra, Amália Rodrigues, Pablo Milanez, Mercedes Sosa, a nosso irmãos latino-americanos, nossos ancestrais africanos e europeus, ou seja, uma visão mundialista de cultura não é uma visão centrada na cultura dominante, mas uma visão diversa, onde cada uma cultura nos possa legar o que tem de melhor, E ONDE NÓS, COMO POVO BIODIVERSO, COMO POVO QUE SE RECONHECE, DE FORMA ORGULHOSA NO ESPELHO, COMO PORTADOR DE UM GRANDE TESOURO CULTURAL, também tem muito a legar. Nós temos Beth Carvalho, Clara Nunes, Elizeth Cardoso e Elis Regina, grandes damas de nossa MPB, capazes de passar para o mundo nossa genialidade com a mesma emoção e beleza que tem uma Ella Fitzgerald.
A questão da memória é algo crucial neste momento no Brasil. Não só temos vergonha de nossa memória, como hoje temos vergonha de defendê-la. Na verdade, a esquerda olha para o próprio umbigo e não tem projeto cultural autônomo. Vê cultura como algo acessório, não tem nenhum projeto de nação. Quando a esquerda se aproxima hoje em dia do movimento cultural é para pedir voto ou apoio, mas nenhum movimento ou partido de esquerda tem qualquer projeto para mostrar ao povo brasileiro que o projeto de recuperação de sua identidade anda de mãos dadas com um projeto político autônomo de Brasil. No processo chileno se dizia que o governo Socialista de Salvador Allende se mantinha com reformas e canções. A efervescência cultural chilena da época mostra como é indissolúvel a transformação cultural da transformação política.
Há gente da esquerda que se julga ultrarrevolucionária e tem coleção dos discos da eguinha pocotó, não sabe quem é Candeia e pouco se interessa pelo destino do samba carioca. Eu coço a cabeça e fico preocupado. Que projeto de país é este? São tão míopes que não conseguem ver que um jovem que começa a cantar Candeia já faz uma opção política de consciência, ainda que não se filie a nenhum partido político?
Cantar Cartola é resistir, é tão ou mais importante do que votar num candidato de esquerda ou se filiar a um partido “revolucionário”. Ainda que me digam que há conservadores que cantam Cartola. Tanto melhor, o conservador na política que canta o mestre Cartola mostra, na prática, o porquê a esquerda brasileira não conseguir avançar um centímetro na disputa do coração e das mentes do povo. A esquerda brasileira tenta conquistar um país que, no fundo, desconhece, ignora e despreza. Eguinha pocotó é opção política de direita em termos de cultura, é optar pelo esquecimento, pelo desprezo de nossa raiz popular cultural, pela cópia servil da pior forma de música estado-unidenses cantada em português.
Memória é coisa séria. Tão importante quanto preservar a Mata Atlântica é preservar as marchinhas (que estão em extinção), tão crucial quanto recuperar a Baía de Guanabara é recuperar o forro pé de serra, tão vital quanto expandir a educação fundamental a 100% dos brasileiros é fazer com que esta mesma totalidade saiba a importância de sua própria cultura, possa ter acesso a amar Geraldo Pereira, João Nogueira, Assis Valente e todos os grandes músicos brasileiros que têm suas músicas ameaçadas de extinção.
Ou enfrentamos a luta pela nossa memória e identidade, ou em 20 anos seremos um povo de cultura completamente estado-unidense.

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