sexta-feira, 15 de julho de 2011

O Velho e o Novo


Lênin utilizava em seus textos da figura de um pretenso intelectual, que, na falta de adjetivos para colocar em seus cartões de visita, cunhou “contemporâneo”. Com isto, o sujeito imbecil considerava-se à frente de seu tempo. Hoje, nesta anedota, o adjetivo seria trocado pelo surrado “moderno” e entraria no cartão de visitas de 90% das pessoas.
Todos querem ser “modernos”. A modernidade passou a ser a qualidade mor, o parâmetro pelo qual todos os outros valores são medidos e julgados. Uma televisão é moderna, um computador é moderno, um carro é moderno; um livro é moderno, uma escultura é moderna, uma música é moderna; um certo tipo de comportamento é moderno, um modo de falar é moderno, um corpo malhado é moderno. Uma pessoa é moderna. O velho é feio, não é de se espantar que hoje as pessoas têm verdadeiro horror a envelhecer.
A antítese fundamental na sociedade passou a ser entre o velho e o novo. É a sociedade da fugacidade e do consumo, que consome produtos, que consome pessoas. Essas passam a ser avaliadas segundo o critério da modernidade: roupas, cabelo, forma física, há um padrão, é um uniforme-medíocre da modernidade. Não para por aí, o gosto artístico, musical e literário também tem de ser “moderno”. Se você for ao MAM e vir um bidê exposto, aplauda! É moderno! O critério (único) para as artes plásticas também é a modernidade (como falta de qualquer outro critério para avaliação).
E quem são os donos dessa modernidade? Críticos de mercado têm de criar o conceito de “moderno” a cada dois minutos para que este possa ser vendido. A obsolescência programada chegou até a arte para que esta seja acima de tudo uma mercadoria. Outro dia havia umas fitas plásticas amarelas e pretas (daquelas que obstruem a frente de prédios que estão desabando) atando duas colunas bem sólidas do edifício da Avenida Rio Branco 1, no Rio de Janeiro. No chão uma placa: “Assimétrico”. Parecia uma interdição, mas era uma “obra de arte”. Moderno!
Para quê critérios estéticos? Discussões sobre forma, conteúdo e beleza? Tudo se subsume ao “moderno”. Isto me lembra o caso contado por Eduardo Galeano, sobre uma visita que Jorge Amado e Pablo Neruda fizeram, na Europa, a uma exposição de um pintor guatemalteco. Fazia poucos meses Arbenz havia sido derrubado, o subsequente bombardeio produzido pela aviação estado-unidense matara 50 mil guatemaltecos, compatriotas do pintor (que fazia sucesso com uma exposição com um monte de quadros abstratos, linhas, e cores, e borrões). No livro de visitas, Neruda escreveu: “mierda!”
Não que a arte tenha de ser utilitarista ou formal. Picasso explodiu os conceitos, trouxe as máscaras africanas ao gosto europeu, mas conseguiu pintar o holocausto do bombardeio nazista em seu apocalíptico “Guernica”. Portinari reproduziu toda a dor brasileira com seus trabalhadores braçais e suas crianças famintas retratadas de forma distorcida, onde o sentir e o pesar davam a forma. Garcia Marques dilatou todos os significados em seu esplêndido, imoral e imortal “Cem Anos de Solidão”. Cortázar perverteu todas as formas, marcas e significados, brincando de amarelinha com seus cronópios e famas. Mas em todos se vê um conteúdo, profundidade, essência e humanidade.
A redução de todos os conceitos a um embate entre o velho e o novo é uma necessidade da sociedade de consumo programado, que necessita de arte e pessoas com prazo de validade. As discussões: local x universal, arte pela arte x arte pelo homem, forma x conteúdo, identidade cultural x intercâmbio, autonomia x renovação, herança cultural x renovação; todas as grandes discussões que dão vida e dinâmica à arte ficam soterradas, o importante é que a obra de arte seja “moderna”.
A música do Harmonia do Samba é péssima? Não, é moderna. A música de Pixinguinha é magnífica? Não, é velha. Todos os conceitos se resumem a um só, se algo é velho ou novo. Lembrem-se da Tropicália chamando o nosso poeta maior, Chico Buarque de Holanda, de velho, sendo tachado de nosso “avô”. Lembremo-nos da resposta magistral dele: “nem toda lucidez é velha, nem toda loucura é genial”. Se a Tropicália teve o poder de trazer novas formas para a MPB, teve também o aspecto negativo de reduzir a discussão ao questionamento se algo é simplesmente “velho” ou “novo”.
O grande questionamento que se faz é: O que é velho? O que é novo? Como o rock pode ser novo se é mais velho que a bossa-nova? Como o blues pode ser uma inovação se tem a mesma origem e percurso parecido com o do nosso samba? E não se está sequer avaliando a qualidade desses gêneros, pois em todos eles têm obras-primas dentre as obras criadas e, do outro lado, lixo.
Quem estabelece o que é novo? A resposta pura e simples é: O Deus Mercado, escrito com D maiúsculo, já que ele é hoje a grande divindade da humanidade. Tudo que existe passa pelo buraco da agulha do valor. Arte passou a ser, então, aquilo que vende, aquilo que o mercado valora como arte. Inspiração? Talento? Valores humanos? Eternidade dos conceitos de uma obra? Paradigmas da condição humana? Sensibilidade? Emoção? Nada disto, a definição é concreta e simples: ARTE É AQUILO QUE VENDE.
Da mesma maneira que o mercado produz geladeiras em série, para serem trocadas de dez em dez anos, ele produz artistas em série para serem trocados de dez em dez meses. É o grande sacrifício da arte no altar do Deus Manon. Aquele que não ser rende é trucidado. É a nova esfinge, que mesmo decifrada, devora a todos que se lhe opõem.
Tudo é arte e todos são artistas, dita-nos o Deus Mercado, cuja obra capital e emblemática, seu totem, é o Big Brother. Se todos são artistas, ninguém o é. Na discussão do que é bom, artisticamente falando, está sempre em lugar primeiro o lucro. Como criticar Paulo Coelho, se ele vende oito milhões de livros? Como questionar Kelly Key se ela vende dois milhões de discos? São os novos gênios, os expoentes culturais da era de aquário.
Neste contexto, os artistas de talento e qualidade sobrevivem apesar do e contra o mercado. Muitos seduzidos pelo canto da sereia, como o Fausto de Goethe, vendem a alma ao diabo para ter sucesso, seus 15 minutos de fama, efêmera, no altar de Manon. Só que a indústria pornô-fonográfica é cruel, enforca, esquarteja e enterra, 20 minutos depois do sucesso, o ídolo que acabara de criar. Aquele que começou cantando Candeia e Cartola, termina cantando o que a mídia quer nos programas dominicais, soletrando coisas ininteligíveis, para ganhar disco de platina, músicas que mais parecem terem sido compostas por doentes mentais.
Na nossa sociedade tudo e todos viram produtos de consumo. Velhos que gastam fortunas para parecerem caricaturas de adolescentes desenhados por um artista plástico de gosto duvidoso. Na sociedade de consumir pessoas envelhecer é crime. E não é só na aparência, é crime escutar Tom Jobim ou Roberto Ribeiro em público. Logo vem a pior xingação possível nos dias de hoje (pior do que filha da puta): velho!
Não é possível constituir o novo sem uma antítese dialética com o velho. Não se pode construir algo sobre o nada. Sem o canto dos escravos não haveria o blues e o samba. Sem o samba não haveria bossa-nova. Sem a cultura grega não haveria a ética e a filosofia modernas. Não se constrói uma nova forma de cultura sem alicerces, sem pisar na pegada dos antepassados, conhecê-los, refletir sobre o que fizeram, para negá-los no que fizeram de ruim ou se omitiram em fazer, mas reafirmá-los no que fizeram de fértil.
Ser jovem, contemporâneo ou moderno não é qualidade nenhuma. O novo real, o realmente revolucionário, só pode sair das entranhas de um mundo dado e conhecido. Quem não sabe donde veio, qual sua cultura e identidade, não tem como criar um novo caminho. Tolstoy dizia: “Pinte sua aldeia e será universal”. Ele escreveu sobre a Rússia para os russos, mas suas obras se imortalizaram e tocam o coração de brasileiros, africanos, asiáticos e por isto foram imortalizadas.
Há que se recuperar os valores que realmente importam na arte e na vida, entender que a dialética entre o velho e o novo é um movimento do conhecimento, tentativa de superação em termos de qualidade, do belo e das ideias que foram construídas por nossos antepassados, nunca a ignorância imbecil de nossa identidade.

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