quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Valsinha

Valsinha


Todos os dias eram iguais. Trabalhavam juntos no mesmo emprego entediante já fazia sete anos. Eram dois seres humanos murchos, sem graça, grises como as paredes daquele Departamento de Pessoal. Conversavam o essencial, ordens, resoluções, metas, aumento de produtividade, competência, números, cifras, determinações, artigos de lei, parágrafos, alíneas. Carcaças de ser humano ambulantes. Todavia eram jovens. Enterrados naquela vida mesquinha, ambos, esperavam o fim de semana para reificarem suas vidas. Mas tudo parecia ser um ciclo e o tempo se repetir. O domingo era a espera da segunda e a segunda uma corrida louca até o sábado, para depois, no domingo esperar o serviço de segunda.
Vinícius tinha uma vida insonsa. Sem cor, sem brilho, sem poesia, sem sentido. Acumulava alguns bens naquela chefia intermediária e fazia dívidas para virar escravo de seus bens. Trabalhava quase 10 horas por dia, durante três horas era escravo da prestação do apartamento, durante duas horas era escravo do carro, mais duas horas de escravidão à prestação dos móveis, celular, aparelho de eletrodoméstico, condomínio, TV a cabo e sobravam duas horas extras para ele trabalhar para o lazer. Na verdade um lazer que era quase um trabalho, programado nos mínimos detalhes, nos locais tumultuados onde as pessoas se estressavam mais do que descansavam, por estarem todas presas na mesma indústria de turismo que exportava engarrafamentos, falta d água, tumulto de gente nos locais onde se ia “descansar”. Na alma ele sentia um imenso vazio, uma tremenda falta de sentido no viver, ele não fruía a vida que fluía.
Ana tinha uma vida sem graça, sem cor, sem brilho, sem poesia, sem sentido. Acumulava alguns bens naquela gerência e fazia dívidas que a tornavam escrava de seus bens. Trabalhava cerca de 10 horas por dia, durante três horas era escrava da prestação do apartamento, durante duas horas era escrava da prestação da casa de campo, mais duas horas de escravidão ao dízimo da igreja, móveis, celular, eletrodomésticos, roupas de grife e sobravam duas horas para ela trabalhar extra e ter uma “reserva”. Lazer, não tinha. Sua dedicação a uma seita seca de corpo, que obscurecia a alma e negava os sentidos, não deixava. Sua vida passava na terra à espera de uma vida no além túmulo, prometida por um pastor 171, que enriquecia enganando os fiéis com uma pregação neurótica de deformação da vida.
Passavam 10 horas juntos por dia. Mais tempo do que passavam com seus familiares, mais tempo que Vinícius passava com seus amigos, mais tempo do que Ana passava na igreja. Ana era chefe dele e ambos comandavam todo um setor de funcionários, sombrios, tristonhos, sempre preocupados em não perder o emprego e em ter o suficiente para continuar a viverem escravizados por seus bens. Nunca se dando conta de que trabalhavam amordaçados aos bens que em tese deveriam melhorar a vida deles, mas que, no fundo, serviam para fazer com que eles mais tempo perdessem num trabalho de números, glosas, retificações que se renovava mês a mês, tudo sempre sem nenhum sentido. Acostumaram-se a presença um do outro. Ana era linda. Ainda que fosse evangélica, e que sua religião mortificasse os sentidos, nos seus vestidos longos ainda reverberava alguma alegria e uma ponta de sensualidade. Sempre muito bem vestida, não sorria, nem brincava muito. A sequidão de sua vida amorosa gerava uma mulher que, tirando as ordens que proferia, pouco falava, quase não brincava e nem sorria. No início ela sentiu-se atraída por ele e, quase sem sentir, por muitas vezes deixou-se ficar olhando para ele, examinando o corpo, o peito forte, os braços torneados. Com o tempo, ela mesmo começou a notar esta atração e a reprimiu. Enterrou no fundo da alma, nada mais demonstrou, embora por dentro uma fagulha ainda vivesse muito próxima daquele palheiro que é uma mulher mal amada. Vinícius era mais moleque, ainda sorria e brincava, embora ficasse sério ao lado dela. A beleza dela na verdade o assustava e inibia. Junto a uma beleza de Atenas, o talhe sério, a forma rígida de ser e executar o serviço da chefe fez com que ele reprimisse o desejo e olhasse para os olhos dela escondendo a atração, quando antes olhava para o início dos seios que discretamente sobravam dos vestidos.
Dias iguais, horas iguais. Vidas comuns. Estressado, mortificado, Vinícius num verão qualquer não fez como nas outras férias. Não foi para as praias badaladas da moda, nem para as cidades de veraneio cheias. Em crise, cansado daquela vida, durante vinte dias exilou-se numa pequena casinhola de uma cidadezinha qualquer, levou os velhos CDs do Clube da Esquina e de Bossa Nova, que durante a adolescência gostara tanto, e que, com a juventude, envergonhado, largara de lado para se entregar à moda. Era agora um homem da moda, um homem mais pensamentos próprios, que para estar de bem com os outros não mais se encontrará. Àquela música que antes fizera tanto sentido, que o fazia refletir na vida e buscar um caminho, um canto, um refúgio, um sentido humano, fora abandonada junto com o sentido que ele antes pensara dar a existência. Neste mês, lendo seu xará, o Poetinha amadorado, Vinícius de Moraes, escutando suas músicas, mais as belas músicas existencialistas do Clube da Esquina, começou a tomar pé de uma nova vida. Precisava renascer, precisava recomeçar. Retomar seus projetos, procurar algo que desse sentido a sua existência. Precisava trabalhar, é verdade, pois necessitava comer, mas trabalharia menos e agora se dava conta, por menos coisas. Pela primeira vez vira que ficara escravo das coisas e de coisas que não valiam à pena, pois não contavam nem como alegria nem como dor. Ser humano e que conta, e destes, ele havia realmente se afastado. Pois a vida yuppie que levava nada mais era do que estar só no meio da multidão. Que realmente importava?
Uma coisa ele sabia. Ana importava. Ele a amava desde a primeira vez que a vira e todos estes anos reprimira este amor para não comprometer seu trabalho e sua posição. Agora, agora FODA-SE! Que se danem os comentários jocosos, a possibilidade de perder o cargo e procurar outro emprego, até o medo de ser rejeitado. Ele iria recomeçar sua vida, e a primeira coisa que faria seria recuperar estes sete anos jogados fora, deixando aquela mulher maravilhosa, Atenas rediviva murchar numa seita escrota que mortificava moralisticamente a carne.
Ana sentira falta dele estes vinte dias de férias. Na verdade ela se acostumara com ele. A presença sem contato físico. A dissimulação de ambos do interesse mútuo de um pelo outro. As discussões de trabalho intermináveis que substituíam palavras simples como “você é linda”, ou “eu te amo”. E eis que ele retorna. Mudado, vestido em mangas de camisa, em lugar do conservador terno com gravata. Barba mal-feita, expressão vagabunda no olhar. Ao chegar ela o cumprimenta com um bom dia e recebe de volta um “bom dia, você está mais linda do que nunca hoje”, em alto e bom som, que surpreendeu toda o escritório e provocou os primeiros comentários maliciosos.
Durante o dia ele nunca desviou o olhar dela. Olhava profundamente nos olhos. Quando ela estava próxima, de forma intensa olhava para o vão dos seios e, quando ela se virava para sair, sentia-se envolvida com o olhar dele, que beliscava a bunda carnuda, redonda e dura dela. Ela sentia-se meio perdida por aquele assédio calado que ela sempre quis sofrer, mas que agora, de certa maneira a ofendia. Vinícius estava em plena caça. E ela acuada, não sabia como agir. Durante os últimos sete anos, tivera só um namorado da igreja, quatro anos de amofinação de um velho fanático que sofria de ejaculação precoce e com a qual chegou a casar com a bênção conservadora e neurótica de sua família. Só a religião fez com que aquela situação durasse quatro anos, ao fim deles, mais marcada e neurotizada, sem nunca ter gozado, sem saber o que era um orgasmo, mais medo ainda tinha dos homens. Mas Vinícius era algo que a envolvia. Ela sempre quisera no fundo que ele a cercasse, a cortejasse, a envolvesse, o olhar de menino pedinte, o desleixo negligente que se observava nele, mesmo quando arrumado, prometiam a ela que se fosse ele, e não o obreiro brocha, seu homem, ela teria sido feliz.
Quase no fim do expediente chegam flores, belas e apaixonantes rosas vermelhas, que causaram alvoroço no serviço e que surpreenderam e gelaram a espinha dela. Num cartão muito bonito, bem escolhido, com motivos florais, havia apenas duas palavras: Te Amo, sem assinatura. Ela automaticamente olhou para ele. Não poderia ser outro, era óbvio. Sufocada, esteve por chorar, desarmada e sem saber o que fazer. Neste mesmo dia teria que novamente se reunir com ele para traçarem algumas metas, agora que ele voltara das férias e ela temia e desejava isto. O que aconteceria? Pensava ela... E sua cabeça dava voltas e sua vista se turvava. As pernas bambearam e ela temeu desfalecer. E, se não fosse ele??? Se fosse outro... Aí seria pior... Ela temia, mas queria que fosse ele. Na verdade, nem sabia bem o que podia acontecer. O tempo passou, todos foram embora, no andar vazio, portas fechadas, só permaneceram ambos, como sempre. Só que, de todas as outras vezes, desejos negados, não estavam ali um homem e uma mulher, mais um chefe e uma gerente. Desta vez não.
Chegou a hora da reunião, eles se fecharam na pequena sala de Ana, Vinícius trancou a porta para que ela não fosse aberta por fora. Antes que ela começasse a falar, Vinícius, de forma surpreendente, ligou um pequeno aparelho sonoro que ele mesmo trouxera e coloca Valsinha, música que ela desconhecia, mas que agora era o enredo daquela paixão:

“Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre
chegar,

Olho de um jeito muito mais quente do que sempre
costumava olhar (...)”
De forma surpreendente e abrupta, ele acolheu o corpo macio dela no seu e começou a dançar a música como se fosse valsa. Ana protestou, não quis. Vinícius estava sendo até um pouco rude, resolvido, apertou a mão dela e não aceitou recusa e ela foi dançando. Primeiro dura, protestando, depois se largando em passos harmônicos com ele, onde a cabeça dela se afundava no ombro dele e as coxas de ambos se entrelaçavam, fazendo com que um rio que há muito fora represado jorrasse como tormenta em busca do mar dela, da saída, da comunicação mais íntima do corpo dela. Ela ainda mais ficou assustada, mais a força daquele desejo terrivelmente era mais forte do que ela imaginara. O beijo primeiro foi conseqüência, doce, intenso, profundo, línguas de fogo enroladas, pernas enroscadas, corpos se roçando, dançando, no ritmo da música sem que eles percebessem. Ela murmurou:
– As rosas, o cartão...
– Eu sempre te amei – Ele respondeu.
Colheu nos braços e a sentou na mesa de reunião. Aquilo a reanimou a lutar... No trabalho... Ela sabia o que ele queria...
Estava quase desfalecida, semi-entregue, mas a parte neurótica dela não queria a parte são aflorando assim... E o emprego? Sua moral? Seu pecado em estar ali, com aquele homem agarrando-se a ela e posicionando o corpo dele entre as coxas dela. Com as mãos ela tentou empurrá-lo. Vinícius estava resoluto. Não a machucaria, não forçaria, não seria um estupro; mas sabia, no fundo, que aquela mulher reprimida, tanto tempo negada em sua essência de mulher, precisaria de luta, de calor do corpo para aflorar, florescer e se entregar. Era uma luta não declarada. Sem golpes fortes. O corpo dele no meio das pernas dela, as mãos dela o empurrando, a boca fechada dela, a boca dele beijando o pescoço, mordiscando a orelha, palavras doces de amor, mordida na nuca, e aquela luta ia virando um jogo, tanto que, sem que percebesse, Ana o expulsava com as mãos e o enlaçava com as pernas. Até que os braços dela que antes expulsaram, agora acariciavam o cabelo daquele homem tão amado neste momento mais do que esperado. As bocas novamente unidas perderam-se em dezenas de beijos. Sentada, com as pernas trançadas nele, ela nem mais parecia aquela crentezinha reprimida; pelo contrário, uma tigresa saltava de dentro de seu peito e ia tomando conta de seus atos. Sentia sua xoxota molhada, jorrando, esperando ser comida, pela primeira vez com competência, e ansiava. Vinícius, de forma áspera, mais carinhosa, já subira o vestido, e baixara as alças dele. Brincava nos mamilos dela, beijava-os, sugava, como frutas do pé tanto tempo desejadas e agora finalmente colhidas. Ela quase chorava de prazer e antevia no volume da calça aquele pau que vira já em seus sonhos censurados, roçando, pedindo para ser libertado.
Surpreendentemente ela abriu a calça e libertou o pau dele, com ele entre suas mãos ela colocou a calcinha de lado e o apontou para a entrada da grutinha. Muito molhada, num só gesto e ato, abrupto, intenso, único, ele a penetrou de uma única vez. Ela não sentiu dor, estava tomada de prazer. Apoiada na mesa, na altura certa para ser bem comida, os movimentos intensos dele, de entrar e sair, cheio de desejo, mais os beijos profundos, as mordidas, as chupadas, iam levando Ana a caminhos que antes ela desconhecera. Perdera o medo, gemia, pela primeira vez na vida um homem a fazia gemer, e a intensidade do prazer que fazia seu corpo tremer já a levara a gritar, nem sequer questionaram se do lado de fora da sala alguém seria capaz de ouvi-los. Sem cuidados, sem peias, gritaram gozaram juntos. Ela arranhou as costas dele, ele inundou a bocetinha dela. Beijaram-se. Confidenciaram-se a paixão secreta e foram dormir juntos nesta noite, na casa dele.
A vida recomeçou, no dia seguinte e nos outros, diferentes, mais contente, mais intensa, com outro sentido. O sentido do prazer, o sentido do amor, de uma mulher que se realizava com um ser amado, com este ser amado que encontrava nesta mulher um refúgio e um caminho. O pastor da Seita Neuróticos Inimigos do Corpo perdeu uma fiel, posto que Ana aprendera a gozar com todo o desespero e força por todos os poros e buracos de seu ser, enquanto Vinícius recuperara um sentido na sua vida. Um dava sustento para a alegria do outro, fodiam todo o tempo, em todos os lugares possíveis, se amavam de forma obscena, proibida e maravilhosa.
Como na música do grande poeta:
“E o mundo compreendeu, e o dia amanheceu em paz”.


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